Veneza, segunda-feira,7 de Maio de 1313
«Naquela manhã, depois de uma noite de chuva intensa, Veneza despertou
bem, tranquila e com um sol brilhante que iluminava as ruas e a lagoa. Do nicho
elevado onde dormia, Agostino observou a Praceta de São Marcos e logo se
apercebeu de que a maré subira durante a madrugada como o siroco da noite
anterior fizera prever. Nesse dia, a limpeza iria requerer, certamente, mais
trabalho e tempo do que o habitual: a maré alta deixava sempre pelas ruas uma
enorme quantidade de lixo. De súbito, avistou umas trouxas de roupa a poucos
braços do mar, na direção das colunas de São Marcos e de São Teodoro. Viu uns
festões de algas, umas tábuas e mais qualquer coisa indefinida presa às ditas
tábuas. Calculou mentalmente a distância entre aquele lixo e o muro da igreja e
concluiu que não era da sua conta. O acordo com os monges era muito preciso: em
troca de uma tigela de sopa minestra duas vezes ao dia e do privilégio de poder
dormir dentro de um nicho que outrora alojara uma estátua, Agostino teria de
limpar, diariamente, o perímetro da Basílica de São Marcos, até uma distância
de dois braços do muro. E aquele monte de lixo encontrava-se pelo menos a
uns sete braços. Era, portanto, da conta dos varredores da Sereníssima.
Levantou-se com dificuldade, massajando os rins doridos, e preparou-se
para descer. Gostava de despachar o trabalho rapidamente para depois descansar
e contemplar o seu território, o único espaço aberto de Veneza que, de tão
grande, merecia a designação de praça. Todos os outros eram chamados muito
justamente de campos e, de pequenos campos, porque a maior parte das vezes
estavam cobertos de erva. Praça pavimentada havia apenas uma: a de
São Marcos, com a praceta contígua que ia até à beira da lagoa. E ele,
Agostino, sentia-se orgulhoso do nome com que as pessoas o tinham baptizado: Agostino
de São Marcos. Parecia mesmo um título nobiliárquico. Recolheu num canto do
nicho toda a palha sobre a qual dormia, cobriu-a com uns farrapos e colocou por
cima duas pedras de modo a que o vento não os espalhasse e as gaivotas não os
sujassem. Depois desceu do nicho, uns bons cinco pés acima do chão, levando às
costas a sua vassoura de sorgo. Antes de começar, porém, decidiu dar uma
espreitadela naquelas imundices. Quem
sabe se no meio da madeira e das algas não encontraria alguma coisa de valor que
pudesse vender? Ninguém o vira. Àquela hora, tirando ele, só os monges
e as gaivotas estavam acordados.
Aproximou-se a passos rápidos, apoiando-se na vassoura como se fosse um
bastão. Na realidade, viria ele a contar depois, quando o seu nome andava já de
boca em boca e as pessoas faziam gala em pagar-lhe um copo para ouvir a
história, dera-se conta, quase imediatamente, do que se tratava, mas o horror
da cena era tal, que São Marcos em pessoa teria intervindo para lhe obscurecer
o pensamento de modo a impedir que o pobre servo enlouquecesse. Na verdade,
Agostino ficara com a impressão de ter compreendido, aos poucos, que as tábuas eram
cruzes, que os festões de algas estavam presos a uma grossa amarra enrolada em
volta da madeira, e que as trouxas informes cravadas nas cruzes eram corpos
humanos, pequenos e inchados pela água, mas tão bem proporcionados que não
podiam ser de anões. Só então, gritando por socorro na praça deserta, Agostino
deixara cair a vassoura e correra para avisar os padres da basílica: a maré alta trouxera à superfície os
corpos de três crianças crucificadas, cada uma delas com um buraco nas
costelas como Nosso Senhor.
Bolonha, sábado, 12 de Maio de 1313
Mondino de Liuzzi, médico anatomista do Studium de Bolonha, sempre
achara que uma decisão como a de partir em viagem devia ser bem ponderada. E no
entanto, poucas horas depois de ter recebido o pedido de ajuda de Adia,
já fizera as malas, confiara a escola de medicina ao tio Liuzzo e o cuidado da
casa a Gabardino, o seu primogénito, e até conseguira uma carta de recomendação
do chefe do conselho dos Anciãos para os notáveis de Veneza. Antes de partir
faltava apenas fazer uma coisa, a mais difícil, e que, por isso, deixara para o
fim. Dedicara um cuidado especial à vestimenta para a viagem. Precisava de
fatos cómodos mas bem feitos. Era uma lição que aprendera durante os anos de
exílio em Faenza: quando um homem se encontra fora do seu ambiente, são os
fatos que falam por si, provocando nos outros respeito ou desprezo. Não
aprovava a nova moda masculina que tendia para encurtar cada vez mais as
vestes, e não considerava digno de um médico andar pela rua com calças até às
coxas ou com calças de riscas de várias cores. Mas, na galé que o conduziria a
Veneza, também não podia usar as vestes vermelhas de médico. Essas iam
guardadas na mala. Por fim escolhera uma túnica cor de ameixa, enriquecida com dois
galões dourados que dos ombros desciam até à bainha, abaixo da barriga da
perna. Debaixo da túnica vestia um par de calças pretas e botins de couro macio
até ao tornozelo». In Alfredo Colitto, Il Libro dell’Angelo, 2011, O Livro do Anjo, Clube
do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-074-4.
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