quarta-feira, 16 de abril de 2014

Livro do Anjo. Veneza 1313. Alfredo Colitto. «Só então, gritando por socorro na praça deserta, Agostino deixara cair a vassoura e correra para avisar os padres da basílica: ‘a maré alta trouxera à superfície os corpos de três crianças crucificadas’…»

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Veneza, segunda-feira,7 de Maio de 1313
«Naquela manhã, depois de uma noite de chuva intensa, Veneza despertou bem, tranquila e com um sol brilhante que iluminava as ruas e a lagoa. Do nicho elevado onde dormia, Agostino observou a Praceta de São Marcos e logo se apercebeu de que a maré subira durante a madrugada como o siroco da noite anterior fizera prever. Nesse dia, a limpeza iria requerer, certamente, mais trabalho e tempo do que o habitual: a maré alta deixava sempre pelas ruas uma enorme quantidade de lixo. De súbito, avistou umas trouxas de roupa a poucos braços do mar, na direção das colunas de São Marcos e de São Teodoro. Viu uns festões de algas, umas tábuas e mais qualquer coisa indefinida presa às ditas tábuas. Calculou mentalmente a distância entre aquele lixo e o muro da igreja e concluiu que não era da sua conta. O acordo com os monges era muito preciso: em troca de uma tigela de sopa minestra duas vezes ao dia e do privilégio de poder dormir dentro de um nicho que outrora alojara uma estátua, Agostino teria de limpar, diariamente, o perímetro da Basílica de São Marcos, até uma distância de dois braços do muro. E aquele monte de lixo encontrava-se pelo menos a uns sete braços. Era, portanto, da conta dos varredores da Sereníssima.
Levantou-se com dificuldade, massajando os rins doridos, e preparou-se para descer. Gostava de despachar o trabalho rapidamente para depois descansar e contemplar o seu território, o único espaço aberto de Veneza que, de tão grande, merecia a designação de praça. Todos os outros eram chamados muito justamente de campos e, de pequenos campos, porque a maior parte das vezes estavam cobertos de erva. Praça pavimentada havia apenas uma: a de São Marcos, com a praceta contígua que ia até à beira da lagoa. E ele, Agostino, sentia-se orgulhoso do nome com que as pessoas o tinham baptizado: Agostino de São Marcos. Parecia mesmo um título nobiliárquico. Recolheu num canto do nicho toda a palha sobre a qual dormia, cobriu-a com uns farrapos e colocou por cima duas pedras de modo a que o vento não os espalhasse e as gaivotas não os sujassem. Depois desceu do nicho, uns bons cinco pés acima do chão, levando às costas a sua vassoura de sorgo. Antes de começar, porém, decidiu dar uma espreitadela naquelas imundices. Quem sabe se no meio da madeira e das algas não encontraria alguma coisa de valor que pudesse vender? Ninguém o vira. Àquela hora, tirando ele, só os monges e as gaivotas estavam acordados.
Aproximou-se a passos rápidos, apoiando-se na vassoura como se fosse um bastão. Na realidade, viria ele a contar depois, quando o seu nome andava já de boca em boca e as pessoas faziam gala em pagar-lhe um copo para ouvir a história, dera-se conta, quase imediatamente, do que se tratava, mas o horror da cena era tal, que São Marcos em pessoa teria intervindo para lhe obscurecer o pensamento de modo a impedir que o pobre servo enlouquecesse. Na verdade, Agostino ficara com a impressão de ter compreendido, aos poucos, que as tábuas eram cruzes, que os festões de algas estavam presos a uma grossa amarra enrolada em volta da madeira, e que as trouxas informes cravadas nas cruzes eram corpos humanos, pequenos e inchados pela água, mas tão bem proporcionados que não podiam ser de anões. Só então, gritando por socorro na praça deserta, Agostino deixara cair a vassoura e correra para avisar os padres da basílica: a maré alta trouxera à superfície os corpos de três crianças crucificadas, cada uma delas com um buraco nas costelas como Nosso Senhor.

Bolonha, sábado, 12 de Maio de 1313
Mondino de Liuzzi, médico anatomista do Studium de Bolonha, sempre achara que uma decisão como a de partir em viagem devia ser bem ponderada. E no entanto, poucas horas depois de ter recebido o pedido de ajuda de Adia, já fizera as malas, confiara a escola de medicina ao tio Liuzzo e o cuidado da casa a Gabardino, o seu primogénito, e até conseguira uma carta de recomendação do chefe do conselho dos Anciãos para os notáveis de Veneza. Antes de partir faltava apenas fazer uma coisa, a mais difícil, e que, por isso, deixara para o fim. Dedicara um cuidado especial à vestimenta para a viagem. Precisava de fatos cómodos mas bem feitos. Era uma lição que aprendera durante os anos de exílio em Faenza: quando um homem se encontra fora do seu ambiente, são os fatos que falam por si, provocando nos outros respeito ou desprezo. Não aprovava a nova moda masculina que tendia para encurtar cada vez mais as vestes, e não considerava digno de um médico andar pela rua com calças até às coxas ou com calças de riscas de várias cores. Mas, na galé que o conduziria a Veneza, também não podia usar as vestes vermelhas de médico. Essas iam guardadas na mala. Por fim escolhera uma túnica cor de ameixa, enriquecida com dois galões dourados que dos ombros desciam até à bainha, abaixo da barriga da perna. Debaixo da túnica vestia um par de calças pretas e botins de couro macio até ao tornozelo». In Alfredo Colitto, Il Libro dell’Angelo, 2011, O Livro do Anjo, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-074-4.

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