António Fernandes. O aventureiro na rota do ouro
africano
«(…) Parece-nos necessário ilustrar estas afirmações com extractos
do relato que Fernandes ditou, por
não saber escrever; eis os exemplos:
- Se o narrador pensa que as circunstâncias o exigem, a descrição desce a pormenores; por exemplo, ao referir-se ao Inhacouce, diz que o respectivo rei é o capitão-mor do rei de Monomotapa, e acrescenta: Fazem na sua terra feiras que se chamam feiras de sembaza, onde os mouros vendem todas as suas mercadorias, e às quais acodem também os cafres de todas as terras; e assim tem [o reino] muitos mantimentos. Dizem que aquela feira é tão grande como a das Virtudes (?), e não há outra moeda senão ouro por pesos;
- As informações sobre o ouro despertaram, como é natural, a maior atenção de Fernandes, e também decerto de Gaspar Veloso, que lhe redigia a narrativa. Assim, por exemplo, a quatro dias de viagem do rei de Manica (e as jazidas auríferas do território deste último também são mencionadas), situar-se-ia o rei de Ansoce, que tira muito ouro; e o feitor de Sofala logo acrescenta: este homem (refere-se, é claro, ao seu informador, António Fernandes) viu-o tirar, e diz que se conhece onde ele está por uma erva, do tamanho de trevo, que sobre ele cresce. E [acrescenta] que a maior soma [de ouro] que viu tirar um dia foi uma alcofa grande, cheia de barras tamanhas como dedos e grãos grossos; e não tem outra cousa senão este ouro; por consequência, os mantimentos vinham de fora. Informa ainda que o rei impunha aos pesquisadores do metal precioso um imposto de cinquenta por cento;
- Regista-se, igualmente, em alguns casos, a produção local de marfim, como produto que tinha bastante procura; com efeito, no relatório aponta-se que o rei de Barué não tinha ouro, mas podia abastecer de marfim os mercadores, pois ele existia com abundância na sua terra. Esta notícia seria de esperar num relato sucinto mas minucioso, como é o de Fernandes. Na verdade, a exportação do marfim pelo porto de Sofala, tendo como primeiro destino a Índia, andou a par com a exportação do ouro, tendo estado ambas sujeitas a desvios e contrabandos de toda a espécie, apesar das apertadas medidas que os governadores da Índia tomaram para os evitar;
- Assinala-se a extracção do cobre, por exemplo no reino de Mombara, donde o levavam a vender ao Monomotapa; a ligação entre os dois reinos fazia-se por via fluvial, em almadias, como o nosso aventureiro pôde apurar. A propósito das relações comerciais entre as populações dos dois regulados, o relatório descreve a prática da tão célebre troca muda, também assinalada por outros autores e em relação a outras regiões; na versão de Fernandes, o procedimento era o seguinte: os homens de Mombaça (aliás mal proporcionados e não muito negros e que têm rabos como de carneiros, o que mostra ter o narrador contactado com os bosquímanos), esses homens, como íamos dizendo, punham as suas mercadorias no chão e tornam a passar para o outro lado do rio; então vêm os mouros ou os cafres, tomam a mercadoria se esta os satisfaz, e deixam-lhes ali panos ou outras quaisquer mercadorias que levem; então vêm os dos rabos e, se lhes agrada a mercadoria que aqueles deixaram, levam-na; se não, deixam-na e vão-se embora, até que os outros venham pôr mais ou lhe tragam outra que os contente, conforme mostram por sinais. Fernandes não deixou de anotar também alguns costumes das gentes de Mombara, que lhe pareceram mais bizarros;
- No reino de Butua, a dez dias de jornada de Embiri, assinalaria a grande produção de ouro, de origem fluvial. Fernandes considerava este rei tão grande como o do Monomotapa e informa que os dois estavam permanentemente em guerra. O reino de Inhócua, a cinco dias de jornada do Monomotapa, era ainda um outro importante centro produtor de ouro, com ricas jazidas em exploração; os reis de Inhócua e do Monomotapa também se mantinham em guerra permanente.
Tendo procedido ao reconhecimento, de que relatámos
os dados essenciais, Fernandes teve
de regressar a Sofala, por já não dispor de presentes para oferecer aos reis e
chefes das terras por onde passaria, prática indispensável a fim de não
encontrar grandes dificuldades nas suas relações com eles». In
Luís de Albuquerque, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos
XV e XVI, António Fernandes, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.
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