quinta-feira, 24 de abril de 2014

João Bermudes. Mestre-barbeiro. Patriarca de Alexandria. Aquilino. «Era, pois, “barbeiro”, e nessa qualidade o requereram à cabeceira de Mateus, quando este, a poucas léguas do litoral numa aldeia contígua ao mosteiro do Bisão, caiu enfermo de febres a que havia de sucumbir em breves dias»

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João Bermudes
«A primeira vez que se toma conhecimento com ele, é apenas Mestre João. Mestre João sem tirar nem pôr. Soldado expedicionário como outro qualquer. É um dos treze, sem frio nos olhos, apartados a dedo dos mil homens da frota, que o governador da Índia manda ao Preste. Ao passo que desempenham uma missão de cortesia, acompanhando o seu embaixador Mateus, ou presumido de tal, estudam as possibilidades duma aliança com o potentado, que teria oiro às carradas e exércitos numerosos como as areias do mar. Mas esta face do problema não interessava nada de nada o Mestre. Quem era, de que origem, que terra serviu de berço ao homem proteico e misterioso, cuja lisura ou alta indústria representou por muito tempo um problema de História? Sabe-se que apareceu em Goa, em 1515, com Lopo Soares, porque ele o diz. Na Carta das Novas, sorte de relatório enviado ao rei Manuel I acerca da maneira como fora organizada a expedição marítima, que tinha por fim desembarcar Mateus na costa etiópica, e dos sucessos que então se deram, vem mencionado sob aquela forma elementar. Nada de apelidos. Tinha família? Na Relação que deixou dos seus feitos, pois como acabado individualista o restante Universo lhe é teatro, alude ocasionalmente ao cunhado e a um seu sobrinho, em dada altura capitão da hoste portuguesa ao serviço do Preste. Mas os seus nomes não figuram em qualquer outro documento ou acta. Escritos uma ou duas vezes, são pedras que caíram num poço.
O pe. Francisco Álvares, por via de regra tão 1oquaz e completo, é escasso de palavras sempre que se trata de Mestre João. Mesmo assim, onde o entremostra, deixa-nos a impressão de homem resoluto, engenhoso, não menos destro que acautelado. Na embaixada, como já na frota, desempenhava o papel de barbeiro e sangrador. Por outros termos: era o facultativo. Estava menos na esfera dos barbeiros fazer as barbas do que ministrar as mezinhas aos doentes. De resto, a prática, que acumulavam, da flebotomia o está a dizer. Os físicos, além de raros, recrutados em regra entre os judeus, estavam adstritos à câmara real ou aos serviços de higiene das cidades. Os navios da carreira da Índia quem levavam a bordo para tratar da saúde dos embarcadiços eram barbeiros. Barbeiro para o corpo e o infalível capelão para a alma.
Era, pois, barbeiro, e nessa qualidade o requereram à cabeceira de Mateus, quando este, a poucas léguas do litoral numa aldeia contígua ao mosteiro do Bisão, caiu enfermo de febres a que havia de sucumbir em breves dias. Também alguns portugueses adoeceram, entre eles o Mestre que, de mão própria e segura, pegou da lanceta e se sangrou». In Aquilino Ribeiro, Portugueses das Sete Partidas, Viajantes, Aventureiros, Troca-tintas, 1950, Livraria Bertrand, Lisboa, 1969.

Cortesia da LBertrand/JDACT