«Vinde, frei Juan, sentai-vos. Se tiverdes tempo, porque eu o tenho
todo, assim Deus o quis, vamos ter uma longa noite. Agradeço-vos por terdes
aceitado estar aqui comigo, com a última rainha de Portugal, a mãe da rainha de
Castela. Olhai este fim de tarde, todo luz, todo oiro, da cor dos frutos
maduros, esta Primavera que começa a cortar a secura fria do Inverno que este
ano, não foi tão agreste como o do ano passado. Pelos muros desta pequena cela
de monja, já escurecida pelo fumo das velas de profundas vigílias, a água punha
pérolas azuladas translúcidas, às vezes nacaradas e opalescentes, quando o Sol
poente as tocava no seu bailado final, leve e terno, como uma despedida apaixonada,
que caíam, perto da janela, no mosaico do chão. Lembravam-me as pedras-da-Lua
com que ornamentavam o ouro dos anéis. Essa pedra de Junho que, antes, pertenceu
à deusa Juno, foi uma das minhas preferidas, em tempos. Diziam que nos trazia a
sorte... Pois, frei Juan de Aranda, acercai-vos da luz que nos resta, antes que
aquela monja que vos fez entrar venha acender esse grosso círio e espevitar o
pavio da candeia. Aproveitai e usufruí desta calma que tem sido a única
companhia de meus dias. Minto. A memória também sulcou a meu
lado, como uma irmã caridosa, a sua presença apaziguadora e firme. Falemos
então da memória.
Eu que já tive tudo, agora nem posso dizer que esta pequena cela de
monja me pertence. Apenas preencho parte do seu reduzido espaço enquanto meu
genro, o frágil, pequenino, achacoso e pálido rei de Castela o desejar. Não é a
minha casa. Deixei de ter casa e aqui, eu que sempre detestei a cidade de
Lisboa pela crueza injusta com que me tratou, recordo-a com saudade, e aos seus
Paços, que frequentei, onde vivi, amei, e decidi algumas coisas do meu destino.
Embora me sentisse melhor em Alenquer, em Évora, em Coimbra, em Santarém, aqui
nem sempre, recordo Lisboa, os Paços a par de São Martinho onde pela
primeira vez falei com Fernando. Por
lá ficou certamente algum resquício da minha antiga presença, do meu sentir,
dos meus sonhos porque as casas contêm algo da nossa alma, do nosso cheiro, das
nossas virtudes e defeitos, porque pertencemos a elas, nos refugiamos dentro
das suas paredes, no abrigo de seus braços maternais.
Não vou chegar a velha e sinto-me feliz por isso. Os velhos, geralmente,
tornam-se egoístas, daquela espécie de egoísmo que é maleita, insensíveis, como
se a sua alma, ao longo do caminho que os anos traçaram, tivesse perdido a
qualidade divina, a sua origem celeste. Não são todos, perdoai-me, frei
Juan, vós que já sois avançado em idade!, mas prometi a mim própria ser sincera
e honesta, no entanto a grande parte deles é assim. Sei que não vou chegar a velha.
Vede como eu estou, débil, esgotada, perdido o fogo do meu olhar que tantos
homens admiraram. Ontem, descobri três cabelos brancos na minha fronte, como se
tivessem, de repente, nascido durante a noite. Sei que não vou chegar a velha e
agora que também percorri um caminho endurecido por escolhos e vicissitudes,
por ódios terríveis e mesquinharias, sinto-me feliz e liberta por poder olhá-lo
de frente, sem subterfúgios, na posse integral das minhas faculdades,
imensamente consciente do que resta do meu destino à face de Deus e dos homens.
Não vos espanteis, meu bom amigo. Ao longo destes anos ouvistes-me em
confissão. Conheceis perfeitamente o retrato secreto da minha alma de
penitente, mas existem verdades tão escondidas que só em certos momentos da
nossa vida as podemos traduzir por palavras
que toda a gente usa. Falei-vos da velhice. Como já percebestes ela não me
atemoriza como a outras pessoas, sobretudo belas mulheres como eu fui, que
vivem o suplício do envelhecimento como o do horror da peste maligna. Não.
Confesso-vos, frei Juan, desde a juventude que não me vi velha, a face rasgada
por sulcos, pálida, sem vida, macerada como a de um pergaminho reutilizado, a
face desesperada da morte, a distante, sempre igual e triste, das monjas
qualquer que seja a sua idade. Isso talvez porque a minha mãe morreu muito
jovem, como o meu pai, assassinado pelos esbirros de Pedro, o Cruel, de Castela, em tempos de meu
sogro, e algumas pessoas mais da minha família. Vi a velhice ao longe como uma
noite, escura, é certo, uma terra de medos secretos, onde ondulavam as copas
das árvores da floresta varridas pelo vento». In Seomara da Veiga Ferreira,
Leonor Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998, Editorial Presença, Lisboa, 1999,
ISBN 942-23-2347-4.
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