quarta-feira, 2 de abril de 2014

As Máscaras do Passado. Maria de Fátima Marinho. «Mal vai porém ao pintor, ou pior vai porém ao pintor, se, tendo de pintar um retrato, descobre que tudo quanto lançou à tela é cor anárquica e desenho louco, e que o conjunto de manchas só reproduz do modelo uma semelhança que a este satisfaz, mas ao pintor não»

Cortesia de wikipedia 

Resumo
O presente ensaio estabelece a importância da presença da História nos textos literários, desde a Idade Média até ao presente. Começando por estudar a ausência de sentido histórico e a inevitável anacronia daí decorrente, debruça-se em seguida sobre as mudanças operadas no século XIX, a fim de melhor se poderem compreender a subversão e transgressão que se verificam a partir do fim dos anos 70 de novecentos. Nos romances pós-modernos, acentua-se a importância da máscara e do duplo, no tratamento que sofrem os factos concretos, a biografia e autobiografia (fictícia) de personagens do passado, a confusão e invenção dos tempos, a memória e o próprio significado conceptual de acontecimentos e atitudes.
«A oposição primária entre História e Literatura tem proporcionado o aparecimento de mal-entendidos que, se por um lado, se esquivam a desvendar as evidentes relações entre as duas, por outro, tendem a encontrar pontos de contacto só aceitáveis se esquecermos as abissais diferenças. A incomodidade, provocada pela proximidade indesejada e pelo afastamento voluntário, tem como consequência uma ambiguidade produtiva que se manifesta, simultaneamente, nas produções literárias desde os tempos mais antigos e nos estudos históricos, que se assumem irremediavelmente como construção narrativa, sob pena de se tornarem numa sequência de datas e de factos sem interpretação. Aliás, a ousadia ocidental de reproduzir o real e os problemas daí decorrentes são magistralmente significados num recente romance do Nobel da literatura turco, Orhan Pamuk, O Meu Nome é Vermelho, quando uma personagem explica a razão do perigo da mimese: 

Segundo ele, nós teríamos representado no último desenho o rosto de um mortal de acordo com as regras do Ocidente, isto é, dando a impressão, não de uma imagem, mas da realidade, de maneira que esta obra incita os que a contemplam a prosternarse perante ela, como numa igreja. (Pamuk 2007)

A ilusão, que parece estar tacitamente presente em toda a representação do real, implica a desconstrução do conceito de imitação e a tentativa, vã, de fixar num momento ideal, a vida e a sua reduplicação. É assim que outra personagem resume o dilema da arte e faz lembrar Óscar Wilde, em The Picture of Dorian Gray: 

O meu filho Orhan, que é pouco subtil de pensamento ao ponto de seguir sempre a lógica, explica-me há vários anos que, por um lado, os mestres eternos de Herat não poderiam pintar-me como eu sou, e que, por outro lado, os pintores da Europa, que não param de pintar crianças com as mães, são incapazes de parar o tempo: e que, por isso, a minha felicidade nunca poderá ser posta em pintura. (Pamuk 2007) 

A incapacidade de reprodução do real, seja ele o do presente ou o do passado, a consciência de que as palavras não exprimem nunca o conflito, mas o seu fantasma (Bessa-Luís 1988) e de que a literatura (…) é uma experiência apenas virtual, que não pode ser utilizada de modo efectivo (Gersão 1984), condicionam a interacção entre História e Literatura, porque uma sabe não poder viver sem a outra, mas sabe também os inevitáveis conflitos que se geram entre a tentativa de estudar e compreender o passado e a tentativa de o fazer interagir, numa perspectiva dinâmica, com o presente e o futuro: (…) é necessário ir criando espaço para o passado que mais convém ao nosso futuro (Macedo 2000), como diria Hélder Macedo no romance Vícios e Virtudes. Há, pois, a vontade de recuperar o texto perdido da História, na convicção plena de que A realidade é um estorvo para os criadores (Bessa-Luís 1988) e de que o modelo e o retrato nunca coincidem, como escreve José Saramago em Manual de Pintura e Caligrafia: 

Na verdade, se qualquer retratado pudesse, ou soubesse, ou quisesse, analisar a espessura pastosa, informe, dos pensamentos e emoções que o habitam, e tendo analisado encontrasse as palavras (…) saberíamos que ele, aquele seu retrato é como se tivesse existido sempre, um outro-ele mais fiel do que o-ele de ontem (…). Mal vai porém ao pintor, ou dizendo mais rigorosamente, pior vai porém ao pintor, se, tendo de pintar um retrato, descobre que tudo quanto lançou à tela é cor anárquica e desenho louco, e que o conjunto de manchas só reproduz do modelo uma semelhança que a este satisfaz, mas ao pintor não. (Saramago 1985) 

In Maria de Fátima Marinho, As Máscaras do Passado, Universidade do Porto, Revista Limite, nº 2, 2008, ISSN 1888-4067.

Cortesia da UPorto/JDACT