Formação intelectual
«(…) À admiração de Góis
pela Alemanha juntava-se um grande afecto pela Holanda e um caloroso apreço pela
Flandres como local de residência. Embora se nos possa afigurar paradoxal que Góis tivesse tido sentimentos patrióticos
ao mesmo tempo que nutria tamanha simpatia e consideração por outras nações,
aparentemente esses sentimentos harmonizavam-se e, de certo modo,
complementavam-se uns aos outros. Não tinha dificuldade em agir por vezes com
um patriotismo fervoroso e em adoptar ao mesmo tempo uma visão global, ou em
avaliar sem preconceitos os costumes das outras nações. Os pendores humanistas
e históricos de Góis levantaram a
questão de se dedicar ou não ao estudo por toda a vida. Enquanto estava ainda
indeciso nesse ponto, Gois travou conhecimento em Danzig com Johann
Magnus, arcebispo de Upsala no exílio, e conversou com ele por várias vezes.
Esse foi um encontro importante para Góis,
pois que o bispo exilado se veio a revelar como um amigo influente e com afinidades
excepcionais; é possível que Gois ficasse a dever a Joannes Dantiscus,
embaixador polaco na corte de Carlos V, o ter sido apresentado a Magnus, cujo
espírito era tão receptivo à maneira de pensar do próprio Góis.
Johann Magnus tinha estado ao serviço diplomático do rei da Suécia até
à altura da conversão de Gustavo Vasa ao protestantismo em 1527. Mesmo antes disso o rei tinha
tratado Magnus com desdém e desconfiança, devido às diferenças religiosas entre
eles. Quando Johann Magnus por fim fugiu da Suécia, não tinha ilusões quanto
aos perigos duma intimidade demasiada com um governante. Agora que tinha
conseguido uma educação humanística em muitos centros de estudo famosos e
aprendido o valor da erudição, dedicava todas as energias a trabalhos históricos,
sem guardar saudades da vida diplomática que tinha abandonado. A maneira culta
de encarar o mundo e a concepção lata que Johann Magnus tinha do catolicismo,
assim como o seu grande apreço por Erasmo, atraíam Góis, que passou a ter grande confiança nele e a respeitar os seus
conselhos.
A modéstia que sentia quanto à sua própria capacidade como escolar
levou Góis a adiar uma mudança
drástica de ocupação. Um sentimento de inferioridade, talvez causado pela falta
de escolaridade, fazia-lhe sentir a necessidade, não só como principiante, mas
através dos primeiros anos de tentativas humanísticas, de ter a inteira sanção de
um amigo autorizado antes de iniciar qualquer projecto de trabalho. Sentia uma
necessidade igual de aprovação depois de completar um projecto, antes de
consentir na sua publicação. Ao falar pela primeira vez com Johann Magnus em 1529 tinha em mente uma tarefa que não ousava
ainda abordar. Desde o dia em que conhecera Mateus, o enviado do Négus, a
curiosidade de Gois pela Igreja Etíope tinha sido despertada, e tinha-se
vindo a criar nele lentamente um forte impulso para defender essa religião
controversa. O relato pormenorizado que fez da questão da Etiópia foi
bem recebido por Johann Magnus. Graças às numerosas viagens que tinha feito na
juventude, Magnus estava mais habilitado do que qualquer dos amigos mais
antigos de Gois a compreender a urgência do problema religioso dessa nação
longínqua. O arcebispo exilado concordava com a opinião de Góis, de que a Igreja da Etiópia devia ser recebida como
membro da comunidade ocidental cristã, e encorajou-o a chamar a atenção dum público
mais vasto para o problema. Em vista disso, Gois ao regressar de Antuérpia,
intensificou os seus estudos de latim até ser capaz, por fim, de traduzir do português
para essa língua as cartas que Mateus tinha trazido para o rei português e para
o Papa». In Elisabeth Feist
Hirsch, The Life and Thought of a Portuguese Humanist, The Hague Netherlands,
1967, Damião de Góis, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002, ISBN
972-31-0677-9.
Cortesia de FCG/JDACT