quinta-feira, 17 de abril de 2014

A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal. Pedro Calafate. «… pôde mesmo converter-se em catalisador do ‘conhecimento científico’, por isso que lhe acrescentava um fim porventura mais digno: ‘o do conhecimento dos atributos divinos’»

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Ciência e Religião. Natureza e Símbolo
«(…) Se em tantos e tão numerosos casos as revelações da ciência lmplicaram rupturas importantes com concepçoes anteriores, que ruíram definitivamente, ao nível mais profundo dos valores culturais e não já dos factos concretos ou do suporte epistometodológico que permitia estabelecê-los, a esse nível, dizíamos, prevaleceram zonas de continuidade, alcançando linhas de compromisso que, a não existirem, infirmariam a própria possibilidade de uma história do pensamento humano. É inegável, pois, que o conhecimento científico da natureza, ao longo dos séculos XVII e XVIII, coexistiu, em certos sectores não necessariamente marginais, com a permanência de uma interpretação simbólica, mesmo entre aqueles autores que mais contribuíram para o desenvolvimento do conhecimento científico. Aí, ciência e o simbolismo das criaturas percorreram um caminho comum, como índice revelador do enriquecimento do campo de possibilidades aberto pelo espírito, actuando, o segundo, não como mero ornamento ou refúgio poético e afectivo, perante a tecnicidade crescente do saber científico, mas sim como resposta ao clima racionalista de desintegração, resposta que emergia de uma das categorias fundamentais da existência: a do seu próprio sentido.
O simbolismo, tal como o veremos constituído na Europa do século XVIII, ergueu um sistema capaz de albergar Deus, a Natureza e o Homem, num projecto integrador de suporte finalista. E se tal postura tinha, pelo menos, a própria idade da Bíblia, o que se verificará, no século XVIII, em Portugal como em sectores importantes do pensamento europeu, é o desenvolvimento desses argumentos, à medida que a própria ciência progride. O sucesso crescente da física e, depois dela, da história natural, se por um lado abriu um mar de ruídos, por vezes vividos de forma dramática e, mesmo, violenta, no edificio dos saberes adquiridos, trouxe também à luz do dia novos e poderosos argumentos em favor da milenar prova da existência de Deus pela ordem e harmonia da natureza, ganhando assim, para si, tudo o que as ciências naturais haviam conquistado, embora, muitas vezes, em oposição aos relatos fisicos das Escrituras.
Neste sentido, a fé, por si só, não constituiu, necessariamente, um obstáculo à pesquisa científica, mas, desde que considerado o problema nesta dimensão estrita e não atendendo à sua cristalização institucional, mais afeita à ortodoxia, pôde mesmo converter-se em catalisador do conhecimento científico, por isso que lhe acrescentava um fim porventura mais digno: o do conhecimento dos atributos divinos. Deste modo se constituirá uma vasta área de reflexão, determinada pela aliança entre a teologia racional e a ciência de observação, cujo resultado apontará para a constituição de uma física teológica, enriquecendo o nível simbólico de interpretação com os novos conhecimentos das ciências da natureza. É, pois, à luz destes pressupostos que importa analisar os fundamentos da fisica teológica, assim como o seu estatuto e importância, na segunda metade do século XVIII em Portugal, configurando um vasto espaço, onde a ciência e o simbolismo das criaturas caminharam a par.

O contexto criacionista das provas cosmológicas, da existência de Deus
O ponto de partida fundamental que legitima a prova da existência de Deus pelas maravilhas da natureza, é, obviamente, um facto real, um acto de existir, que reclama um princípio, uma razão de ser, entendida sob a forma de princípio de causalidade. Nesta conformidade se afirmará que a razão de ser desse facto é a própria existência de Deus. No entanto, a legitimidade de uma tal conclusão apenas se dá a partir do momento em que o espírito reconhece, nesse dado real, a marca de uma imperfeição e o signo de uma dependência. É ela que permitirá afirmar que o ser dado na experiência sensível supõe uma relação a um ser superior, que o transcende infinitamente. Essa é, a função essencial do símbolo: abrir o finito ao infinito». In Pedro Calafate, A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal (1740-1800), Estudos Gerais, Série Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994, ISBN 972-27-0700-0.

Cortesia INCM/JDACT