Ciência e Religião. Natureza
e Símbolo
«(…) Se em tantos e tão numerosos casos as revelações da ciência
lmplicaram rupturas importantes com concepçoes anteriores, que ruíram
definitivamente, ao nível mais profundo dos valores culturais e não já dos
factos concretos ou do suporte epistometodológico que permitia estabelecê-los,
a esse nível, dizíamos, prevaleceram zonas de continuidade, alcançando linhas de compromisso que, a não
existirem, infirmariam a própria possibilidade de uma história do pensamento
humano. É inegável, pois, que o conhecimento científico da natureza, ao longo
dos séculos XVII e XVIII, coexistiu, em certos sectores não necessariamente
marginais, com a permanência de uma interpretação simbólica, mesmo entre
aqueles autores que mais contribuíram para o desenvolvimento do conhecimento
científico. Aí, ciência e o simbolismo das criaturas percorreram um caminho
comum, como índice revelador do enriquecimento do campo de possibilidades
aberto pelo espírito, actuando, o segundo, não como mero ornamento ou refúgio
poético e afectivo, perante a tecnicidade crescente do saber científico, mas
sim como resposta ao clima racionalista de desintegração, resposta que emergia
de uma das categorias fundamentais da existência: a do seu próprio sentido.
O simbolismo, tal como o veremos constituído na Europa do século XVIII,
ergueu um sistema capaz de albergar Deus, a Natureza e o Homem, num projecto
integrador de suporte finalista. E se tal postura tinha, pelo menos, a própria
idade da Bíblia, o que se verificará,
no século XVIII, em Portugal como em sectores importantes do pensamento
europeu, é o desenvolvimento desses argumentos, à medida que a própria ciência
progride. O sucesso crescente da física e, depois dela, da história natural, se
por um lado abriu um mar de ruídos, por vezes vividos de forma dramática e,
mesmo, violenta, no edificio dos saberes adquiridos, trouxe também à luz do dia
novos e poderosos argumentos em favor da milenar prova da existência de Deus
pela ordem e harmonia da natureza, ganhando assim, para si, tudo o que as
ciências naturais haviam conquistado, embora, muitas vezes, em oposição aos
relatos fisicos das Escrituras.
Neste sentido, a fé, por si só, não constituiu, necessariamente, um
obstáculo à pesquisa científica, mas, desde que considerado o problema nesta dimensão
estrita e não atendendo à sua cristalização institucional, mais afeita à
ortodoxia, pôde mesmo converter-se em catalisador do conhecimento científico,
por isso que lhe acrescentava um fim porventura mais digno: o do conhecimento
dos atributos divinos. Deste modo se constituirá uma vasta área de
reflexão, determinada pela aliança entre a teologia racional e a ciência de observação,
cujo resultado apontará para a constituição de uma física teológica,
enriquecendo o nível simbólico de interpretação com os novos conhecimentos das
ciências da natureza. É, pois, à luz destes pressupostos que importa analisar os
fundamentos da fisica teológica, assim como o seu estatuto e importância, na
segunda metade do século XVIII em Portugal, configurando um vasto espaço, onde
a ciência e o simbolismo das criaturas caminharam a par.
O contexto criacionista das provas cosmológicas, da existência de Deus
O ponto de partida fundamental que legitima a prova da existência de
Deus pelas maravilhas da natureza, é,
obviamente, um facto real, um acto de existir, que reclama um princípio, uma razão de ser, entendida sob a forma de
princípio de causalidade. Nesta conformidade se afirmará que a razão de ser desse facto é a própria
existência de Deus. No entanto, a legitimidade de uma tal conclusão apenas se
dá a partir do momento em que o espírito reconhece, nesse dado real, a marca de
uma imperfeição e o signo de uma dependência. É ela que permitirá afirmar que o
ser dado na experiência sensível supõe uma relação a um ser superior, que o
transcende infinitamente. Essa é, a função essencial do símbolo: abrir o finito ao infinito». In
Pedro Calafate, A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal (1740-1800), Estudos
Gerais, Série Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994,
ISBN 972-27-0700-0.
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