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A Decisão pela Filosofia. Natureza do impulso para a Ciência
A vontade de intervenção na vida dos homens
«(…) Ao descrever a situação presente, Hegel insiste numa nota a que já se aludiu por diversas vezes e que
se revela fundamental para a inteligibilidade dos novos rumos do seu
pensamento: a consciência expressa do carácter instante da decisão pela
Filosofia, a imperatividade da mudança, ele tinha
de ser impelido para a Ciência, o ideal da juventude tinha de transformar-se na forma
da reflexão. Esta coerção ab intra
é uma exigência, e uma urgência, simultaneamente de ordem pessoal e em
referência à génese da própria atitude científica. Mas é também um apelo da
situação histórica. No prolongamento desta dinâmica, desta eficácia oculta que
orienta a sua formação e que provoca a alteração dos princípios rectores da sua
existência, entronca a perspectiva do futuro: como agir no plano da história
imediata, que tipo de participação, justificada
por que razões e dirigida a que fins?
Pergunto-me agora, enquanto me
ocupo ainda disso, que retorno se tem de encontrar para intervir na vida dos
homens.
Seria condenar-se a uma incompreensão irremediável entender que Hegel se
interroga aqui por uma aplicação, por uma tradução instrumental da Ciência, por
uma exploração do sistema na acção imediata. O retorno a que a carta se refere
não é uma consequência exterior ou posterior à decisão pela Ciência, mas uma
explicitação, um desentranhar da razão de ser da necessidade que a ela conduz e
que ela satisfaz, a afirmação do saber por si mesmo, o qual, como afirmação absoluta,
é autodeterminação, intervenção livre, trabalho essencial. A razão do intervir
consistirá no estabelecer dos fundamentos da legitimidade do saber. Tal irá ser
a função pedagógica que Hegel reivindicava para o seu labor intelectual desde
os tempos recuados de Tubinga, uma vez descoberta a Filosofia como a
definitiva e mais radical pedagogia da vida. A Ciência é o reconhecimento do
absoluto da razão e da liberdade, suprema iniciativa em que a vida dos
homens supera o que nela há de morto, toda a cisão,
o sentimento da contradição da
natureza com a vida existente é a necessidade
que urgia resolverl. Por isso, o caminho procurado para a intervenção na
vida dos homens confundir-se-á com o caminho para a Ciência. O primeiro escrito
de Iena confirma esta interpretação: a Filosofia torna-se imperativa e
inadiável, quando a cisão se torna insuportável na esfera da existência, como
compreensão e acção reunificadoras, como reconciliação da vida cindida de si
mesma. O verdadeiro eixo sobre o qual gira toda a evolução de Hegel, tal como esta carta a deixa
delineada, é o primado do ético.
A Razão Infeliz. Fenomenologia e dialéctica da crise
Francoforte representa o momento crítico em que se impõe a Hegel a
necessidade de abandonar o ideal da juventude, através de uma decisão pela
Filosofia sistemática, o que de imediato suscita duas questões: qual a
natureza da experiência intelectual que constitui essa transferência de interesse
profundo e qual a exigência que desencadeou o destino do pensar que
se reivindica do estatuto de Ciência
e, como tal, se justifica? Sobre a natureza da crise, dispomos de
informações fornecidas pelo próprio Hegel que designa tal situação peculiar,
complexa na sua componente afectivo-intelectual, obscura nas suas raízes e
localizada por ele no tempo de uma forma imprecisa, por hipocondria. Não é de modo algum pacífica a interpretação
desse período que precede Iena, ou de parte dele, como constituindo uma
vivência particularmente agudizada e que se deixasse adequadamente conter nesta
expressão hipocondria; seria
antes em Berna que Hegel experimentaria algo de semelhante a uma grave tensão
pessoal, inibidora de reflexão e da acção, que o obrigaria a uma muito ampla
reformulação das perspectivas filosóficas que eram então as suas. Tal é,
nomeadamente, a convicção de Pöggeler, um investigador particularmente
orientado para o estudo da evolução hegeliana até à publicação da Fenomenologia.
Se remonta a Dilthey a percepção desta fase como a de uma viragem abrupta, num
clima de acentuada crise pessoal, é, no entanto, Rosenzweig o primeiro a tomar
o tema da hipocondria como uma
chave de leitura privilegiada, insistindo no factor existencial, Hegel seria
uma bela alma, em estado de
rompimento radical com o seu tempo; a génese de uma solução especulativa
ocultar-se-ia nesse conflito e o princípio desta, a reconciliação com o
destino, o mundo e a história no saber sistemático, só no fim do período de
Francoforte seria encontrado. Numa linha interpretativa totalmente diferente,
quanto aos pressupostos, Lukács retoma, porém, parcialmente (nos dois
sentidos do termo), esta tese». In Manuel Carmo Ferreira, Hegel, E A
Justificação da Filosofia (Iena, 1801-1807), Estudos Gerais, Série
Universitária, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, ISBN
972-27-0516-4.
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