O Mito de Tristão
«(…) Muitos são os traços da lenda de Tristão que assinalam um mito. Em primeiro lugar, o facto de o
autor, admitindo que o teve, e um só, nos ser totalmente desconhecido.
As cinco versões originais que nos
restam são manipulações artísticas de um arquétipo de que não pudemos encontrar
o menor rasto. Um outro aspecto mítico da lenda de Tristão é o elemento sagrado que ela utiliza. O progresso da acção
e os efeitos que ela devia exercer sobre o ouvinte dependem, em certa medida
(que teremos de definir), de um conjunto de regras e de cerimónias que é afinal
o da cavalaria medieval. Ora as ordens
de cavalaria foram muitas vezes chamadas religiões.
Chastellain, cronista da Borgonha, denomina assim a ordem do Velo de Oiro
(é o último a fazê-lo) e fala dela como de um mistério sagrado, num século em
que a cavalaria já não era, no entanto, mais que uma sobrevivência. Finalmente,
a própria natureza da obscuridade que
descobrimos na lenda denota o seu parentesco profundo com o mito. A obscuridade do mito em geral não reside
na sua forma de expressão. Por um lado, reside no mistério da sua origem, por
outro, na importância vital dos factos que o mito simboliza. Se esses factos
não fossem obscuros, ou se não houvesse
algum interesse em obscurecer a sua origem e o seu alcance para os subtrair à
crítica, não haveria necessidade de mito. Podíamo-nos contentar com uma
lei, um tratado de moral ou mesmo uma historieta que desempenhasse o papel de
mnemónica. Não há mito enquanto for lícito manter-se dentro das evidências e
exprimi-las duma maneira manifesta ou directa. Pelo contrário, o mito aparece
logo que seja perigoso ou impossível confessar claramente um certo número de
factos, sociais ou religiosos, ou de relações afectivas, que no entanto se
deseja conservar ou que é impossível destruir. Deixamos de ter necessidade de
mitos, por exemplo, para exprimir as verdades da ciência: consideramo-las, com
efeito, de uma maneira profana e têm
portanto tudo a ganhar com a crítica individual. Mas temos necessidade de um mito para exprimir o facto obscuro e
inconfessável de que a paixão está ligada à morte e implica a destruição
para aqueles que a ela se abandonem com todas as suas forças. É que nós queremos
salvar essa paixão e queremos bem a essa infelicidade, enquanto as nossas
morais oficiais e a nossa razão as condenam. A obscuridade do mito coloca-nos, portanto, em estado de acolher o seu
conteúdo disfarçado e de gozar dele pela imaginação, sem todavia tomarmos dele
uma consciência bastante clara para que a contradição ressalte. Assim se
encontram postas ao abrigo da crítica certas realidades humanas que sentimos ou
pressentimos como fundamentais. O mito exprime
essas realidades, na medida em que o nosso instinto o exige, mas vela-as também na medida em que a luz e
a razão as ameaçariam.
De origem desconhecida ou mal conhecida, de carácter primitivamente
sagrado, velando o segredo que exprime, possuiria o Romance mítico de Tristão no mesmo grau as qualidades coercivas de um verdadeiro
mito? Esta pergunta não pode ser evitada. Ela conduz ao cerne do
problema e da sua actualidade. Precisemos que as regras cavalheirescas, que no
século XIII desempenhavam realmente um papel de pressão absoluta, só intervêm
no romance a título de obstáculo mítico e
de figuras rituais de retórica. Sem elas a fábula não encontraria pretextos
para os seus ressaltos e sobretudo não teria podido impor-se sem contestação aos
ouvintes. Somos obrigados a ver que essas cerimónias
sociais são meios de fazer aceitar um conteúdo
anti-social, que é a paixão. A palavra conteúdo adquire aqui toda a sua força: a paixão de Tristão e de Isolda é literalmente contida pelas regras da cavalaria. Só
com esta condição ela se poderá exprimir na semi-claridade do mito.
Porque, enquanto paixão que quer a Noite e que triunfa numa Morte
transfiguradora, ela representa para toda a sociedade uma ameaça violentamente
intolerável. É preciso portanto que os grupos constituídos sejam capazes de
lhe opor uma estrutura fortemente elaborada para que ela encontre ocasião de se
exteriorizar sem causar os piores estragos.
Se, posteriormente, o laço social vier a enfraquecer ou se o grupo for
dissociado, o mito deixará de o ser num sentido estrito. Mas o que tiver
perdido em força coerciva e em meios de se comunicar sob uma forma velada e
admissível, irá recuperá-lo em influência subterrânea e em violência anarquizante.
À medida que a cavalaria, mesmo sob a sua forma profanada de savoir-vivre, os usos que deve observar
quem desejar ser um gentleman, perder
as suas últimas virtudes, a paixão contida
no mito primitivo propagar-se-á na vida quotidiana, invadirá o subconsciente,
atrairá novas coacções, inventá-las-á se necessário... Pois veremos que não é
só a natureza da sociedade, mas o próprio ardor da paixão sombria, que exige
uma confissão mascarada.
O mito, no sentido estrito do
termo, constituiu-se no século XII, ou seja, num período em que as elites
faziam um vasto esforço no sentido de uma ordenação social e moral. Tratava-se
de conter, precisamente, os impulsos
do instinto destruidor: porque a religião, atacando-o, o exasperava. Os
cronistas, os sermões e as sátiras desse século revelam-nos que ele conheceu
uma primeira crise do casamento, que
provocava uma viva reacção. O êxito do Romance de Tristão foi portanto o
de ordenar a paixão num quadro em que pôde exprimir-se em satisfações simbólicas.
Assim a Igreja havia compreendido o
paganismo nos seus ritos». In Denis de Rougemont. L’Amour et
l’Occident, Librarie Plon, 1938, O Amor e o Ocidente, Vega, Lisboa, 1956.
Cortesia de Vega/JDACT