Fala a loucura
«(…) Mas já é tempo, como diria Homero, de deixar as regiões celestes
para descer à terra onde não encontramos nem letícia nem felicidade sem a minha
ajuda. Vede primeiramente que providência a da Natureza, genitriz e fabricante
do género humano, a de deixar em tudo o condimento da loucura. Com efeito,
segundo a definição dos estóicos, a sapiência não é mais do que a conduta da
razão; pelo contrário, a loucura consiste em deixar-se levar pelas paixões.
Para que a vida dos homens não fosse inteiramente triste e tétrica, Júpiter
deu-lhes mais paixões do que a razão, na proporção de um grão para meia-onça.
Além disso relegou a razão para um canto estreito da cabeça, deixando o resto
do corpo entregue às paixões. À razão opôs ainda dois tiranos violentíssimos a
ira, que tem a sua sé no peito, com a própria fonte da vida que é o coração, e
a concupiscência cujo império se dilata até ao baixo-ventre. Quanto vale a razão
contra estas duas forças reunidas é o que a vida comum dos homens satisfatoriamente
nos mostra. A razão pode gritar até enrouquecer para fazer cumprir as fórmulas
da honestidade; é rainha a que os homens não obedecem, a que os homens replicam
com injúrias, até que emudeça ou se declare vencida.
Mas o homem, nascido para administrar as coisas, deveria receber um
pouco mais do que uma onça de razão. Júpiter consultou-me a este respeito, e
dei-lhe um conselho digno de mim: o de unir a mulher ao varão. A mulher é um
animal louco como nenhum, inepto, ridículo e delicioso que no convívio
doméstico atenuaria a tristeza do engenho viril com a loucura feminina. E claro
que, quando Platão parece hesitar em incluir a mulher entre os animais
racionais, nada mais pretende do que indicar a loucura insigne desse sexo.
Quando por acaso uma mulher quer passar por sábia, não faz mais do que dizer
que é duas vezes louca. Ninguém vai ungir um boi para a palestra, nem Minerva o
consentiria. Não procedamos, pois, contra a natureza; o vício fica agravado
quando dissimulado de virtude, por maior que seja o engenho. É bem justo o
provérbio grego: um macaco é sempre um macaco, ainda que vestido de púrpura.
Assim também a mulher é sempre mulher, quero dizer sempre louca, ainda que ponha
uma máscara.
As mulheres não me podem levar a mal que lhes atribua a loucura, porque
eu também sou, além de mulher, a própria Estultícia. Vendo bem as
coisas, devem ser gratas à Estultícia que lhes permite serem muito mais
felizes do que os varões. Têm a graça da formosura, mérito que antepõe a todas
as coisas, e que lhes serve para tiranizarem os próprios tiranos, O varão tem
as formas rudes, a cútis híspida, a barba selvagem, e tudo isto o envelhece
embora signifique sabedoria; as mulheres, com as faces sempre macias, a voz sempre
doce, a pele sempre lisa, têm a seu favor os atributos da juvência perpétua.
Por que optam elas nesta vida, senão por agradar
da melhor maneira aos varões? Não é essa a razão de tantos cuidados,
enfeites, banhos, perfumes, penteados, cosméticos, cremes, pinturas, de tanta
arte no embelezamento do rosto e dos
olhos? Não é a Loucura a deusa que lhes entrega da melhor maneira os varões submissos?
Que é que eles não prometem às mulheres, e que é que eles não lhes permitem? E tudo isto em troca de quê, se não da voluptuosidade? Quem
permite todas estas delícias é a estultícia. Basta reparar na figura que o varão
faz, e nas tolices que diz à mulher quando pretende obter a volúpia que ela
concede. Sabeis agora qual é o primeiro e o principal prazer da vida, e de que
fonte decorre.
Mas há pessoas, especialmente os velhos, que são mais amigos das
bebidas do que das mulheres, e que encontram a suma volúpia no molhar da garganta.
Se pode haver um lauto convívio sem a presença das mulheres, outros que o
digam. O que é certo é que nenhum seria agradável sem o condimento da estultícia.
Se aos convivas faltar vera ou simulada estultícia que provoque o riso,
procura-se então o bobo mercenário ou o parasita ridículo que gracejando, isto
é, dizendo loucuras, expulsará do banquete o silêncio e a tristeza. De que
valeria contentar o ventre com manjares, guloseimas, se aos olhos, aos ouvidos,
e à alma inteira não forem dados risos, palavras jocosas, frases alegres! Ora
sou eu a organizadora desses divertimentos. Todas as cerimónias dos banquetes,
deitar as sortes para escolher o rei, fazer brindes, cantar em coro, dançar,
pantominar, não foram inventadas pelos sete sofos da Grécia, mas por mim,
para a felicidade do género humano. E o que caracteriza a natureza destas
coisas é que quanto mais estultícia tiverem, mais alegram a vida dos mortais.
Porque a vida, se for triste, nem sequer merece o nome de vida. É preciso fugir
da tristeza, e do tédio que é parente dela, por este género de divertimentos». In
Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura, tradução de Álvaro Ribeiro, colecção
Filosofia e Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1987.
Cortesia de Guimarães Editores/JDACT