João Bermudes
«A primeira vez que se toma conhecimento com ele, é apenas Mestre
João. Mestre João sem tirar nem pôr. Soldado expedicionário como
outro qualquer. É um dos treze, sem frio nos olhos, apartados a dedo dos mil homens
da frota, que o governador da Índia manda ao Preste. Ao passo que desempenham
uma missão de cortesia, acompanhando o seu embaixador Mateus, ou presumido de
tal, estudam as possibilidades duma aliança com o potentado, que teria oiro às
carradas e exércitos numerosos como as areias do mar. Mas esta face do problema
não interessava nada de nada o Mestre. Quem era, de que origem, que terra
serviu de berço ao homem proteico e misterioso, cuja lisura ou alta indústria representou por muito tempo um
problema de História? Sabe-se que apareceu em Goa, em 1515, com Lopo Soares, porque
ele o diz. Na Carta das Novas, sorte de relatório enviado ao rei Manuel I
acerca da maneira como fora organizada a expedição marítima, que tinha por fim
desembarcar Mateus na costa etiópica, e dos sucessos que então se deram, vem
mencionado sob aquela forma elementar. Nada
de apelidos. Tinha família?
Na Relação que deixou dos seus feitos,
pois como acabado individualista o restante Universo lhe é teatro, alude
ocasionalmente ao cunhado e a um seu sobrinho, em dada altura capitão da hoste
portuguesa ao serviço do Preste. Mas os seus nomes não
figuram em qualquer outro documento ou acta. Escritos uma ou duas vezes, são
pedras que caíram num poço.
O pe. Francisco Álvares, por via de regra tão 1oquaz e completo, é
escasso de palavras sempre que se trata de Mestre João. Mesmo assim, onde o
entremostra, deixa-nos a impressão de homem resoluto, engenhoso, não menos
destro que acautelado. Na embaixada, como já na frota, desempenhava o papel de
barbeiro e sangrador. Por outros termos: era o facultativo. Estava menos
na esfera dos barbeiros fazer as barbas do que ministrar as mezinhas aos doentes.
De resto, a prática, que acumulavam, da flebotomia o está a dizer. Os físicos, além
de raros, recrutados em regra entre os judeus, estavam adstritos à câmara real
ou aos serviços de higiene das cidades. Os navios da carreira da Índia quem
levavam a bordo para tratar da saúde dos embarcadiços eram barbeiros. Barbeiro para o corpo e o infalível capelão
para a alma.
Era, pois, barbeiro, e nessa
qualidade o requereram à cabeceira de Mateus, quando este, a poucas léguas do
litoral numa aldeia contígua ao mosteiro do Bisão, caiu enfermo de febres a que
havia de sucumbir em breves dias. Também alguns portugueses adoeceram, entre
eles o Mestre que, de mão própria e segura, pegou da lanceta e se sangrou». In Aquilino
Ribeiro, Portugueses das Sete Partidas, Viajantes, Aventureiros, Troca-tintas, 1950,
Livraria Bertrand, Lisboa, 1969.
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