A Corte de Manuel I
«(…) Enquanto se formava o carácter intelectual de Góis também se desenvolviam os seus interesses culturais. O rei
Manuel I devia ter sido um professor sagaz que pelo exemplo e pelo entusiasmo
foi capaz de despertar as capacidades latentes do discípulo. As inclinações de Góis harmonizavam-se com as predilecções
pessoais do rei, e a personalidade do jovem desabrochava plenamente na
atmosfera do palácio real que tão conforme era à sua própria índole. O tom da
corte, alegre e despido de formalidades, tornou-se parte da atitude e do modo
de vida de Góis. Como um príncipe
típico da Renascença, Manuel I patrocinava múltiplas actividades culturais e
espirituais. Assim, por exemplo, manifestava piedade religiosa deplorando
abertamente os abusos verificados durante o pontificado de Alexandre VI. As
comédias e farsas do maior dramaturgo português da época, Gil Vicente,
famoso pela crítica social que incluía a censura severa da Igreja e das ordens
religiosas, eram apresentadas regularmente na corte. É possível que Góis tivesse ganho o gosto pela
discussão franca de pontos controversos de religião através de Gil Vicente,
muito antes de se ter familiarizado com o Elogio da Loucura de Erasmo,
mas os seus escritos não mencionam o nome do dramaturgo.
É provável que as peças ou autos
de Gil Vicente tenham sido especialmente aliciantes para Góis pelos trechos musicais que
continham. Embora Damião fosse
sensível a todas as artes, era pela música que se exprimia o seu talento
criador. A boa sorte de Gois quis que o rei fosse amigo da música, mantivesse
uma capela excelente, e não só apreciasse a música nas horas de lazer mas
também pedisse com frequência aos seus músicos que tocassem enquanto trabalhava.
Gois familiarizou-se com vários instrumentos e tocava alguns. Ouviam-se os tons
suaves da espineta, da harpa ou do violino nas reuniões sociais de maior
intimidade, enquanto que a flauta ou o tamborim eram fontes de distracção ou de
música de dança. Usavam-se o tambor e o trombone nos desfiles militares, e a trombeta
nas funções de cerimonial.
Góis distinguiu-se como
executante do clavicórdio, do címbalo e da cítara, e é possível que nessa época
tenha tentado compor na tradição dos famosos músicos flamengos Ockeghem e
Josquin. Embora não haja a certeza quanto às datas das suas composições, na
juventude manifestou preferência pela polifonia. Manuel I, como Góis nos conta
na crónica do monarca, procurava atrair à corte os melhores músicos da Europa e
do além-mar; devem ter sido incluídos representantes da música polifónica,
visto que esse género de música se tinha espalhado em muitos países e era
popular na vizinha Espanha, em especial na Universidade de Salamanca e na corte
de Carlos V. Durante a permanência de Góis no palácio, Manuel I pôs em prática
um ambicioso programa de construção que só foi igualado pela reedificação de
Lisboa por Pombal após o terrível terramoto de 1755. Os olhos de Gois cedo se treinaram a distinguir a obra do
artista autêntico da de imitação inferior. Tornou-se um coleccionador
entusiasta de quadros e acabou por ser conhecido pela sua colecção de obras de
grandes artistas contemporâneos.
Por se preocupar com as artes, o monarca não mostrava interesse por
reformas na esfera académica, embora elas fossem bem precisas, e em
consequência Damião não teve no
palácio grandes oportunidades para adquirir conhecimentos da literatura da
Antiguidade. Apesar disso, contudo, recebeu bastante encorajamento nas suas
primeiras mostras de interesse pela história. Manuel I tinha um grande sentido
da tradição, e foi no seu reinado que começou a enfadonha tarefa de se pôr
ordem nos Arquivos Nacionais, tarefa que seria continuada muitos anos
mais tarde pelo próprio Góis. Para
mais, Manuel I insistia em que os príncipes e, supõe-se, os cortesãos, lessem
regularmente as velhas crónicas. Por isso Damião
aprendeu um pouco da disciplina a que mais tarde iria dedicar as suas energias
de escolar, e começou a ter uma concepção da historiografia como ciência». In Elisabeth Feist Hirsch, The Life
and Thought of a Portuguese Humanist, The Hague Netherlands, 1967, Damião de
Góis, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002, ISBN 972-31-0677-9.
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