«Nosso material era único, insubstituível e, quando dentro de mil anos, ou de dois mil, alguém quisesse consultar a carta de Guyúk a Inocêncio IV, devia poder fazê-lo. Assim, simples. O que aconteceria a um empregado do museu de Louvre que deixasse aberto, um vidro de tinta sobre o marco da Gioconda...? Desde que estava à frente do Laboratório de restauração e paleografia do Arquivo Secreto Vaticano, nunca permitira erros semelhantes em minha equipe, todos sabiam, e não ia consentir agora. Enquanto apertava o botão do elevador, estava plenamente consciente de que meus funcionários não me apreciavam muito. Não era a primeira vez que notava em minhas costas seus olhares carregados de reprovação, assim não me permitia pensar que contava com sua estima.
Com
certeza, não acreditava que conseguir o afecto de meus subordinados ou de meus
superiores fosse o motivo pelo qual há oito anos atrás, me deram a direcção do
Laboratório. Afligia-me profundamente despedir o irmão Buzzonetti, e só eu sabia
como me ia sentir durante os próximos meses, mas era por tomar esse tipo de
decisão que eu chegara até onde me encontrava. O elevador parou silenciosamente
no quarto andar inferior e abriu suas portas para me dar passagem. Coloquei a
chave de segurança no painel, passei meu cartão identificador pelo leitor
eletrónico e apertei o zero. Instantes depois, a luz do sol, que entrava pelas
grandes janelas do edifício desde o pátio de San Damásio, colou em minha cabeça
como uma faca, me cegando e aturdindo.
A
atmosfera artificial dos andares inferiores bloqueava os sentidos e
incapacitava para distinguir a noite do dia e, em mais de uma ocasião, quando
me achava ensimesmada em algum trabalho importante, surpreendera a mim mesma
saindo do edifício do Arquivo nas primeiras luzes do dia seguinte, totalmente
alheia ao passar do tempo. Piscando, olhei distraída para o meu relógio de
pulso; era uma em ponto. Para minha surpresa, o Reverendíssimo Padre Guglielmo
Ramondino, em lugar de me esperar comodamente em sua sala, como eu imaginava,
andava de um lado para o outro no enorme vestíbulo, com um grave gesto de
impaciência no rosto. Doutora Salina, murmurou, me apertando a mão e se
encaminhando até a saída, Acompanhe-me, por favor. Temos muito pouco tempo.
Fazia calor no Jardim Belvedere naquela manhã de princípios de Março. Os
turistas nos olharam avidamente desde as janelas dos corredores da pinacoteca
como se fossemos exóticos animais de um extravagante zoológico. Sempre me
sentia muito estranha quando caminhava pelas áreas públicas da cidade e não
havia nada que me irritasse mais do que dirigir o olhar a qualquer ponto por
cima de minha cabeça e encontrar, me apontando, a objectiva de uma câmara
fotográfica. Por desgraça, certos prelados curtiam isso, exibindo sua condição
de habitantes do menor estado do mundo e o padre Ramondino era um deles.
Vestido de clérigo, mas com a batina aberta, seu enorme corpanzil de camponês
lombardo se deixava ver há vários quilómetros de distância. Preocupou-se em me
levar até às dependências da Secretaria de Estado, no primeiro andar do Palácio
Apostólico, pelos lugares mais próximos do percorrido pelos turistas e,
enquanto me contava que íamos ser recebidos em pessoa por Sua Eminência
Reverendíssima o Cardeal Ângelo Sodano, com quem, pelo que parecia, uma
estreita e velha amizade os unia, despachava amplos sorrisos à direita e
esquerda como se desfilasse em uma procissão provinciana no Domingo da
Ressurreição.
Os
guardas suíços postados na entrada das dependências diplomáticas da Santa Sé
nem sequer pestanejaram ao nos ver passar. Assim o sacerdote secretário que
controlava as entradas e saídas, foi quem tomou nota em seu livro de registo,
de nossos nomes, cargos e ocupações. Ao final se colocou de pé e nos guiou
através de uns longos corredores cujas janelas davam para a Praça de São Pedro,
onde o Secretário de Estado nos aguardava. Ainda que tentasse dissimular,
caminhava junto ao Prefeito com a sensação de ter um punho de aço me oprimindo
o coração: apesar de saber que o assunto que estava motivando todas aquelas
estranhas situações não podia estar relacionado com erros em meu trabalho,
repassava mentalmente tudo que fizera durante os últimos meses à busca de
qualquer facto que merecesse una reprimenda da mais alta hierarquia eclesiástica».
In
Matilde Asensi, O Último Catão, 2005, Editora Dom Quixote, ISBN
978-972-202-904-9.
Cortesia de EDQuixote/JDACT
JDACT, Matilde Asensi, Literatura, Vaticano, Conhecimento,