Jerusalém, época actual
«Se na Europa Ocidental as nossas
condições de vida mudaram, e muitos judeus se tornaram homens proeminentes e
políticos importantes, na Rússia isso não aconteceu. Porquê? O czar e os seus
governos eram profundamente reacionários e temerosos de tudo o que julgavam
diferente. De tal forma que faziam os judeus viver nas chamadas zonas de
residência, situadas nas cidades do sul da Rússia, Polónia, Lituânia, Ucrânia,
que então faziam parte do Império Russo. A lealdade dos judeus, quando Napoleão
invadiu o país, nem sequer teve influência no espírito da corte russa. Catarina
não nos queria, na verdade era difícil encontrar um czar ou uma czarina que nos
quisesse como súbditos. Refere-se a Catarina, a Grande. Sim, claro, fez o que
estava ao seu alcance para nos expulsar. Mas não conseguiu... Não, não
conseguiu; teve de se resignar a aprovar medidas que limitavam as actividades
dos judeus. Não eram muitos os judeus que viviam dignamente naquele tempo:
alguns comerciantes, alguns prestamistas, alguns médicos... Sim, alguns
conseguiram autorizações especiais e foi-lhes permitido viver quase como cidadãos
normais. Já ouviu falar dos pogroms?
Naturalmente, sei o que foram os
pogroms. Em 1881, houve um atentado contra o czar Alexandre II e entre os participantes
do complô havia uma mulher judia, Gesia Gelfman. Na verdade, a sua participação
não foi relevante, mas serviu de desculpa para se desencadear uma selvajaria
contra os judeus de todo o império. Aquele pogrom começou em Yelisavetgrad, e
estendeu-se a Minsk, Odessa, Balti... Milhares de judeus foram assassinados. Um
ano depois, muitos dos que sobreviveram tiveram de abandonar tudo o que tinham
porque o novo czar, Alexandre III, assinou uma ordem de expulsão. A sua família
sofreu aqueles pogroms? Está interessada em saber? Sim, murmurou ela. Precisava
que o homem relaxasse. Ela também precisava disso.
Se tiver tempo para ouvir a história...
Pode ser uma forma de entender melhor as coisas.
S.
Petersburgo - Paris
O meu avô paterno era comerciante
de peles, tal como o seu pai, Simão. Viajavam pela Europa a vender peles russas
aos peleiros, que com elas cosiam sofisticados casacos para as suas clientes
ricas. As suas melhores clientes encontravam-se em França. Em Paris, Simão
tinha um amigo peleiro, Monsieur Elias. Quando Simão morreu, o meu avô Isaac
continuou com o negócio e ampliou-o. O meu avô Isaac costumava trocar parte da
sua mercadoria por esses casacos já confecionados que depois vendia na corte de
São Petersburgo. As aristocratas russas gostavam de tudo o que chegava de
Paris. A minha avó Ester era francesa, filha de Monsieur Elias, que não
conseguiu evitar que o jovem Isaac levasse a sua menina, por mais que se
opusesse.
Monsieur Elias tinha ficado viúvo
e Ester era a sua única filha. Isaac e Ester casaram em Paris e dali viajaram
até uma aldeia próxima de Varsóvia, para a casa onde Isaac vivia com a sua mãe
viúva, Sofia. Tiveram três filhos, Samuel, Anna e Friede, o mais novo. Tinham
todos um ano de diferença entre eles. Monsieur Elias lamentava-se sempre por
ter a sua filha e os seus netos longe e, quando Samuel, o meu pai, fez dez
anos, o meu avô Isaac decidiu levá-lo com ele para França para conhecer o seu
avô. Samuel tinha problemas de saúde e a sua mãe separou-se dele muito apreensiva.
Sabia que para Monsieur Elias seria uma dádiva conhecer o seu neto mais velho,
mas perguntava-se se Samuel seria capaz de aguentar os inconvenientes de uma
viagem tão longa.
Não te preocupes, o nosso Samuel
já é quase um homem, consolou-a a sua sogra, Sofia, e o Isaac vai saber cuidar
dele. Tenta sobretudo que não arrefeça e, se tiver febre, fiquem numa pousada e
dá-lhe este xarope. Vai aliviá-lo, insistiu Ester. Vou saber cuidar do nosso
filho; cuida tu dos outros, não os percas de vista, sobretudo o Friede, o
menino é demasiado inquieto. Parto em paz sabendo que não estão sozinhos, que
contas com o apoio da minha mãe. Para Isaac tinha sido um alívio que Ester se
desse bem com a sua mãe. Sofia tinha uma personalidade forte, mas rendera-se à bondade
de Ester. Nora e sogra pareciam mãe e filha». In Julia Navarro, Dispara, eu já
estou morto, Editora Bertrand, 2014, ISBN 978-972-252-905-1.
Cortesia de EBertrand/JDACT
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