terça-feira, 21 de novembro de 2023

Idade Média. Umberto Eco. «… o homem medieval atribui um significado místico a todos os elementos do mobiliário do mundo: pedras, plantas, animais. As justificações filosóficas desta atitude têm, basilarmente, duas origens. Uma é de origem neoplatónica…»

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O que a Idade Média nos Deixou

«Finalmente, é nos últimos decénios da Idade Média que aparece no Ocidente a pólvora de tiro (provavelmente já conhecida dos chineses, que a utilizavam para efeitos pirotécnicos). Tudo muda na arte da guerra, e 18 anos antes do fim oficial da Idade Média, perante a nova invenção do arcabuz, Ludovico Ariosto cantará:

Come trovasti, scellerata e brutta

invenzion, mai loco in alcun core?

Per te la militar gloria è distrutta:

per te il mestier de l’arme è senza onore;

per te il valore e la virtù ridutta

che spesso par del buono il rio migliore;

non più la gagliardia, non più l’ardire,

per te può in campo al paragon venire (Orlando furioso, XI, 26)

E assim começa verdadeiramente, sob tão terrível agoiro, a obscura Idade Moderna.

Em que sentido a Idade Média foi radicalmente diferente dos nossos tempos

A Idade Média elaborou não só uma constante tensão para o Além mas também um sentimento visionário do mundo terreno e da natureza. O homem medieval via o mundo como uma floresta cheia de perigos, mas também de revelações extraordinárias, e a Terra como uma extensão de regiões remotas povoadas por seres esplendidamente monstruosos. Extraía estas fantasias dos textos clássicos e de inúmeras lendas, e acreditava firmemente que o mundo estava povoado por cinocéfalos com cabeça de cão, ciclopes com um olho único no meio da testa, blémies sem cabeça e com a boca e os olhos no peito e criaturas com um lábio inferior tão proeminente que ao dormir cobrem com ele toda a cara para defender-se do ardor do sol; por seres com uma boca tão pequena que comem por um buraquinho utilizando caules de aveia, e por panotos com orelhas tão grandes que podem cobrir com elas todo o corpo; por atacantes que caminham inclinados para o chão como as ovelhas e sátiros com nariz adunco, chifres na testa e pés de cabra, ou por ciápodes, só com um pé que lhes serve de guarda-sol quando se deitam de costas no chão, por causa do calor do sol.

Tudo isto e muito mais (baleias em forma de ilha, onde São Brandão aproava ao navegar em mares remotos, os reinos da longínqua Ásia, onde abundavam pedras preciosas, e muitas outras fantasias), constituía o repertório do maravilhoso medieval. Se fosse só isto, estas maravilhas não seriam diferentes das que haviam fascinado a Antiguidade e o período helenístico. Mas a Idade Média consegue traduzir grande parte deste repertório do maravilhoso em termos de revelação espiritual. Talvez nunca alguém tenha exprimido melhor este aspecto da psicologia medieval do que Johan Huizinga, no seu Outono da Idade Média: A grande verdade do espírito medieval está contida nas palavras de São Paulo aos coríntios: Videmus nunc per speculum et in ænigmate, tunc autem facie ad

faciem (agora vemos obscuramente como por um espelho, mas, então, veremos directamente). A Idade Média nunca esquece que qualquer coisa será absurda se o seu significado se limitar à sua função imediata e à sua forma fenoménica, e que todas as coisas se estendem em grande parte pelo Além. Esta ideia é-nos também familiar, como sensação não formulada, quando, por exemplo, num momento de tranquilidade, o ruído da chuva nas folhas das árvores ou a luz da lâmpada em cima da mesa nos dão uma percepção mais profunda do que a percepção do dia a dia que serve para a actividade prática. Pode, por vezes, aparecer na forma de uma opressão doentia que nos leva a ver as coisas como se impregnadas de uma ameaça pessoal ou de um mistério que deveríamos conhecer mas que não pode ser conhecido. Mais frequentemente, porém, enche-nos da tranquila e confortante certeza de que também a nossa existência participa neste sentido secreto do mundo.

O homem medieval vivia, de facto, num mundo cheio de significados, referências, espíritos, manifestações de Deus nas coisas, e numa natureza que falava continuamente uma linguagem heráldica, em que um leão não era só um leão, uma noz não era só uma noz e um hipogrifo era tão real como um leão porque era, como ele, um sinal, existencialmente insignificante, de uma verdade superior, e o mundo inteiro parecia um livro escrito pelo dedo de Deus.

Já se falou de situação neurótica, mas no fundo era uma atitude que prolongava a actividade mitopoética do homem clássico elaborando novas figuras e referências em harmonia com o ethos cristão, reavivando por meio de uma nova sensibilidade ao sobrenatural aquele sentido do maravilhoso que o classicismo tardio já tinha perdido há muito, ao substituir os deuses de Homero pelos deuses de Luciano.

Neste sentido, o homem medieval atribui um significado místico a todos os elementos do mobiliário do mundo: pedras, plantas, animais. As justificações filosóficas desta atitude têm, basilarmente, duas origens. Uma é de origem neoplatónica (e o neoplatonismo influencia grandemente o pensamento medieval, ainda que por fontes frequentemente de segunda mão como Pseudo-Dionísio, o Areopagita). É o próprio Pseudo-Dionísio que, ao colocar o problema dos nomes divinos e, portanto, de como se pode definir e representar Deus, diz que a divindade longínqua, incognoscível e não nomeável é bruma luminosíssima do silêncio que ensina misteriosamente… treva luminosíssima… não é um corpo nem uma figura nem uma forma e não tem quantidade nem qualidade nem peso, não está num lugar, não vê, não tem um tacto sensível, não sente nem cai sob a sensibilidade… não é alma nem inteligência, não possui imaginação ou opinião, não é número nem ordem nem grandeza… não é substância nem eternidade nem tempo… não é treva nem é luz, não é erro e não é verdade, e assim por diante ao longo de páginas e páginas de fulgurante afasia mística (De Mystica Theologia)». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

 Cortesia de PdQuixote/JDACT

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