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de wikipedia e jdact
«(…) O largo. (Aqui me apareceu pela primeira vez o Engenheiro, anunciado por
dois cães.) O largo: Visto da janela onde me encontro, é um terreiro nu, todo
valas e pó. Grande de mais para a aldeia, é facto, grande de mais. E inútil,
dir-se-á. Pois, também isso. Inútil, sem sentido, porque raramente alguém o
procura apesar de estar onde está, à beira da estrada e em pleno coração da
comunidade. Tal como um prado de cardos, mostra-se agressivo, só domável ao
tempo; e se não pica repele, servindo-se das covas, dos regos das chuvas ou da
poeirada dos estios. Um largo, aquilo a que verdadeiramente se chama largo,
terra batida, tem de ser calcado por alguma coisa, pés humanos, trânsito, o que
for, ao passo que este aqui, salvo nas horas da missa, é percorrido unicamente
pelo espectro do enorme paredão de granito que se levanta nas traseiras da
sacristia. Diariamente, ano após ano, século após século, essa muralha, mal o
sol se firma, envia a sua sombra para o terreiro, arrastando uma outra, a da igreja.
Leva-a envolvida, viaja com ela pelo deserto de buracos e de pó, cobre o chão,
arrefece-o, e ao meio-dia recolhe-se, expulsa pelo sol a pino. Mas a tarde é
dela. À tarde a sombra recomeça a invasão, crescendo à medida que a luz
enfraquece. Tão escura, observe-se, tão carregada de hora para hora, que parece
uma mensagem antecipada da noite; ou, se preferirem, uma insinuação de trevas
posta a circular pela muralha em pleno dia para tornar o largo mais só,
deixando-o entregue aos vermes que o minam.
Assim, o enorme paredão figura mais
como vulto, fantasma familiar, do que propriamente como muro. Isto, num certo
sentido. Porque para quem conheça a aldeia (consulte-se a citada Monografia
do Termo da Gafeira, do abade Agostinho
Saraiva, MDCCCI) é ali que está o pórtico do povoado, o mastro, segundo ele,
dumas gloriosas termas romanas mandadas construir por Octavius Theophilus, Pai
da Pátria. Lá se pode ler, na pedra imperial (e na gravura que abre o livro), o
mandato solene gravado a todos os ventos: ISIDI DOMIN – M. OCT. LIB THEOPHILVS.
A muralha, como lápide de uma vasta e
destroçada campa com vinte séculos de abandono. Ou simplesmente como cabeça do
largo. E, crucificada nela e na sua legenda de caracteres ibéricos, digo,
lusitanos, a igreja. Depois temos buracos e terra esquecida até à estrada de
alcatrão, temos tabernas e comércio sonolento e, a fechar o traçado, uma fila
de casas a cada margem, muitas delas vazias e ainda com as argolas onde
antigamente se prendiam as bestas. Antigamente, em tempos mais felizes. Antigamente, cinquenta, setenta anos
atrás, o terreiro foi com certeza uma praça de feira, porque não? Um arraial.
Um encontro de marchantes, com almocreves e mercadores de sardinha vindos de
longe atrás das muares. Haveria barbeiros tosquiando ao sol e mendigos de chaga
e alforje; tabuleiros com arrufadas; galinheiras de guarda aos seus pequeninos
cestos de ovos, acocoradas debaixo de largas sombrinhas (visto não existirem
árvores); não faltaria sequer o capador em visita, cavalgando uma égua
tristemente guedelhuda... Tudo isto devidamente emoldurado por uma correnteza
de mulas e de jumentos presos às argolas das paredes enquanto os donos se
perdiam pelas tabernas». In José
Cardoso Pires, O Delfim, 1.ª
edição, Moraes Editores, Lisboa, 1968, 10.ª edição, Publicações Dom
Quixote, 1988, 2003, ISBN 972-201-654-7.
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