Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Feira e arraial. Arraial bordado por um friso de animais de carga,
um friso de caudas a dar-a-dar (como galhardetes ao vento), nuvens de moscas em
torno de ancas luzidias, e lojas cheias de forasteiros, lojas cheias, lojas
cheias, e, atrevo-me a acrescentar, dinheiro e vinho a correr, mesmo que fosse a hora
da missa e os camponeses embalados nos negócios e nas conversas de balcão
esquecessem lamentavelmente os seus deveres de cristandade. Não se lhes levaria
a mal por isso, tinham desculpa. A igreja, já de si pequena para a povoação,
não comportaria os mercadores de fora, e os mais atrasados haviam de ficar
à porta, ao ar livre, acompanhando a cerimónia por simples cálculo de tempo e
pela campainha do sacristão. Os últimos, à falta de melhor, recolher-se-iam nas
tendas, bebendo e conversando em tom comprometido, mas todos, no largo ou ao
balcão, fariam o sinal-da-cruz quando, através da manhã silenciosa, soasse o
tilintar de sanctus, sanctus,
sanctus.
Pois sim, mas agora o largo é o que
se vê. Uma muralha, um espectro. Mais exactamente, um terreiro enfeitado de
argolas que tiveram a sua época quando rompiam das pedras chumbadas para
deterem o viajante pela arreata da montada, de modo a fazerem desta praça uma
estação, um ponto desejado. Por isso ele se mostra tão triste e paciente no seu
silêncio e, mais que paciente, esquecido da aldeia. Tão renegado como o conheci
faz hoje um ano, dia trinta e um de Outubro, por ocasião da minha primeira
caçada na lagoa. Abade Agostinho Saraiva:
Desta terra da Gafeira quis a
Providência fazer exemplo de castigo. Porque sendo dotada de águas boas na cura
das feridas malignas e de abundante e saboroso pescado, não a redimiu o Senhor
com a vara de Sua Altíssima Clemência, a qual tem duas pontas e são a do
castigo do século e a do arrependimento cristão. E estas pontas são de fogo e
de mel e conduzem à absolvição no dia em que das entranhas da Gafeira
desaparecer o último sinal de paganismo bem como dos festins e orgias que se
levaram a efeito nas termas romanas instaladas por Teófilo e das quais restam pedras
ímpias e inscrições de agravado speculum
exemplorum.
Aceitemos a maldição. Soletremos a
muralha pecadora e com mão oficial, zeloso doutor, escrevamos o nihil obstat para descanso
de todos nós. Sou assim, respeito os mortos que deixaram a sua palavra no
granito e no papel. Mesmo que os mortos se chamem Agostinhos Saraivas, Júlios
Dantas, Augustos Castro e outros literatos menores, sem esquecer os das
estátuas. Bem, e depois? Depois, quero dizer que os respeito mas que não me
aproprio deles, ao contrário de muitos políticos, para lhes torcer o cadáver e
as ideias à minha feição. Na maior parte dos casos passo de chapéu na cabeça
por tais personagens, como se continuassem vivos, e a isso chamo eu respeitar.
Por conseguinte, o muro que se conserve como está, e o abade também (nas
páginas que escreveu), porque um e outro são incapazes de me explicar o
terreiro acolá batido pela luz da tarde. Para o compreender tenho de fazer um
desvio, recuar um ano. Escolher uma manhã de domingo e colocar, ao centro da moldura
de argolas encimada pela legenda romana, não o bufarinheiro de outros tempos,
não as galinheiras debaixo dos guarda-sóis nem o ferrador a talhar cascos, mas
um Jaguar modelo E-4.2. litros. Isso: o largo e um Jaguar de frente para a
igreja, mais ou menos no sítio onde está o meu carro. Um pouco à esquerda,
talvez; vinte passos, digamos. Agora junto, se me permitem, dois
lobos-de-alsácia, cada qual amarrado ao seu escudete do pára-choques; junto
sol, muito sol, e, perdoai, abade, que não sei o que faço, espalho um pouco de
música também, ponho a deslizar certos coros esganiçados que costumam ouvir-se
nas missas de província». In José
Cardoso Pires, O Delfim, 1.ª
edição, Moraes Editores, Lisboa, 1968, 10.ª edição, Publicações Dom
Quixote, 1988, 2003, ISBN 972-201-654-7.
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