Cortesia
de wikipedia e jdact
Ficheiro:
Abu
«(…) Poderia arrepender-me e
deitar fora esse primeiro bloco: deixo-o aqui apenas para mostrar como podem
nesta tela coexistir o ser e o dever ser, contingência e necessidade. Contudo, poderia
subtrair o bloco indesejado ao texto visível mas não à memória, conservando
assim o arquivo dos meus remorsos, roubando aos freudianos onívoros e aos
virtuosos das variantes o prazer das conjecturas, a própria ocupação e a glória
académica. Muito melhor que a memória verdadeira, porque esta, quiçá a preço de
duro exercício, aprende a lembrar mas não a esquecer. Diotallevi ficou
sefarditicamente louco com aqueles palácios de grandes escadarias, e a estátua
de um guerreiro que perpetra crime horrível contra a mulher indefesa, depois
corredores com centenas de quartos, cada qual com a representação de um
portento, aparições subitâneas, acontecimentos inquietantes, múmias animadas, e
a cada imagem, fácil de gravar, podes associar um pensamento, uma categoria, um
elemento da alfaia cósmica, decerto um silogismo, um sorites imane, cadeias de
apotegmas, colares de hipálages, rosários de zeugmas, danças de hýsteron
próteron, lógoi apofânticos, hierarquias de estoiquéias, precessões de
equinócios, paralaxes, herbários, genealogias de gimnosofistas, ad infinitum, ó
Raimundo, ó Camilo, que vos bastava repassar na mente as vossas visões e logo reconstruíeis
a grande cadeia do ser, em Love and joy, pois tudo aquilo que se desencadeia no
universo em vossa mente já estava reunido em volume, e Proust vos teria feito
sorrir. Mas quando juntamente com Diotallevi, pensávamos construir uma ars
oblivionalis, não conseguimos chegar a encontrar as regras para o esquecimento.
É inútil, podes andar em busca do tempo perdido seguindo lábeis indícios como o
Pequeno Polegar no bosque, mas não consegues perder de propósito o tempo
reencontrado, como uma ideia fixa. Não existe uma técnica do esquecimento,
estamos ainda nos processos naturais causais, lesões cerebrais, amnésia ou a
improvisação manual, sei lá, uma viagem, o álcool, a sonoterapia, o suicídio. Abu
pode, ao contrário, conceder-te pequenos suicídios locais, amnésias
provisórias, afasias indolores. Onde estavas ontem à noite. Muito bem, leitor
indiscreto, tu jamais saberás, mas aquela linha ali em cima, interrompida, era
exactamente o início de uma longa frase que escrevi de facto mas que depois
preferi não ter escrito (e nem mesmo pensado), porque queria que o escrito não
tivesse sequer acontecido.
Bastou um comando para que uma
baba lactiginosa se espalhasse sobre o texto fatal e inoportuno, apertei a
tecla cancelar e pssst, tudo desapareceu. Mas não basta. O trágico do suicida é
que, mal ele salta da janela, entre o sétimo e o sexto andares, raciocina: ah,
se pudesse voltar atrás! Mas embalde. Jamais aconteceu. Splash. Abu, ao
contrário, é indulgente, permite a resipiscência, poderia em seguida recuperar o
meu texto desaparecido se decidisse em tempo e comprimisse a tecla de
recuperação. Que alívio. Só de saber que, se quiser, poderei recordar, esqueço
num minuto. Não mais andarei pelos barezinhos a desintegrar naves espaciais com
os projécteis tracejantes, já que o monstro não te desintegra. Faz melhor que
isso, desintegra os pensamentos. É uma galáxia de milhares e milhares de
asteróides, todos enfileirados, brancos ou verdes, acredite se quiser. Fiat
Lux, Big Bang, sete dias, sete minutos, sete segundos, e nasce diante de teus
olhos um universo em perene liquefação, onde não existem nem mesmo linhas
cosmológicas precisas e vínculos temporais, nada senão numerus Clausius, aqui
se vai para trás mesmo no tempo, os caracteres surgem e reafloram com ar
indolente, brotam do nada e dóceis a ele retornam, e quando voltas a chamar,
concatenas, cancelas, dissolvem-se e reectoplasmam-se em seu lugar natural, é
uma sinfonia submarina de enlaçamentos e fracturas moles, uma dança gelatinosa
de cometas autófagos, como o lúcio do Yellow Submarine; premes a falangeta e o
irreparável começa a escorregar para trás na direcção de uma palavra voraz
desaparecendo nas suas fauces, que a suga e swrrlurp, lá se foi, se não
paras ela se come a si mesma e se engorda de seu nada, buraco negro de
Cheshire.
E se escreves algo que o pudor
não queira, tudo acaba na disquete, neste imprimes uma palavra de ordem, e
pronto, ninguém mais te poderá ler, óptimo para os agentes secretos, escreves a
mensagem, pões a ressalva e terminado, metes o disco no bolso e vais à vida, que
nem mesmo Torquemada poderá saber o que escreveste, apenas tu e o outro (o
Outro?). Supõe também que te torturam, finges que vais confessar e digitas a
palavra, mas em vez disso comprimes uma tecla oculta e a mensagem lá se foi. Ora,
eu havia escrito algo, movi o polegar por engano, desapareceu tudo. Que era?
Não me lembro. Sei que não estava revelando Mensagem alguma. Mas quem sabe se a
seguir». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Sicidea, Difel, 2008, ISBN
978-846-125-726-3.
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