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«(…) Não há memória de que tal multidão se haja alguma vez reunido, nem
de que os mesmos actos se tenham repetido mais vezes do que aquelas que eu, no
pouco que olhava, podia ver, pois tudo era nascer, comer, reproduzir-se e morrer,
e nenhum outro acontecimento se destacava, uma batalha ou uma festa. certamente
que as havia, umas e outras, mas o conjunto incalculável da humanidade
comia-as, e tudo parecia igual, monótono e informe. Interessa-lhe algum
acontecimento especial, algo verdadeiramente extraordinário? Porque ali pode
ver como estão a abrir o ventre à mãe de César, e, um pouco mais abaixo, como o
mesmo César, algo mais velho, claro, cai sob os punhais conjurados e cobre a
cabeça com o manto. E claro que, se lhe interessa ouvir Marco António, verá que
as suas palavras verdadeiras foram um pouco menos bonitas que as que
Shakespeare lhe atribui, e não tão bem declamadas como as que Marlon Brando
diz; nesse caso, respondi-lhe, prefiro continuar a ler Shakespeare. Gostaria de
assistir à estreia de Júlio César no Globe? Ali vemos Londres perfeitamente...
Se o senhor não se importa, preferia contemplar um acontecimento bastante
mais modesto. Aconteceu numa aldeia galega, ribeira de uma rua, há um pouco
mais de meio século: exactamente no dia treze de Junho de 1910. Nessa altura nasceu
um menino, e eu gostaria de assistir... Não quero dizer ao parto, naturalmente:
segundo os meus preconceitos, não seria bem visto que eu estivesse presente
como espectador do meu próprio nascimento, pelo facto de ser a minha mãe quem
grita. Pareceu-me que Cagliostro me olhava com benevolência sorridente; de
qualquer forma tive perante mim a casa onde nasci, a sala dessa casa, a alcova
da minha avó, onde acabavam de deitar a minha mãe. Era um dia muito bonito, o
meu pai contemplava-o, ou fingia que o fazia, pois estava nervoso, conforme
mostravam os pés inquietos e os cigarros que ia fumando. As mulheres entravam e
saíam, na sala e na alcova, e ouviam-se como que gemidos distantes ou
reprimidos. Perguntou-me Cagliostro se eu desejava esperar que aquilo
terminasse, dado que duraria seguramente algumas horas; eu respondi que não,
que o desenlace me bastava, e então mostrou-me como saíam c6m um recém-nascido
do quarto bem envolto nas suas fraldas, já lavado, e o mostravam ao meu pai. O
meu pai não sabia o que fazer. Dá-lhe um beijo, homem!, disse-lhe a que me
trazia nos braços, provavelmente uma das minhas tias. E o meu pai beijou-me,
então.
Esta visão escassamente duradoura, nada grandiosa, embora indubitável;
a percepção insólita de acontecimentos e de pessoas que se estendiam como num
deserto imenso (esse deserto é, seguramente, a Mente em que se realizam); a
convicção de ser maciça e de vulto aquela gente e de que todos respiravam,
fizeram com que eu levasse a sério e recebesse como verdade o que o Grande
Copta me mostrava, e tive então a ideia de lhe pedir que me ilustrasse acerca
de Napoleão, de quem provavelmente tinha sido contemporâneo, ou cuja época
tinha atravessado, como quem desde os tempos de O Colar da Rainha chegou até
aqui; ao que desatou a rir, e me disse que, se eu tivesse interesse, um
interesse razoável e discreto, me ajudaria a averiguar por mim próprio, embora noutra
ocasião. Não sei porquê, Ariadne, interpretei aquele riso como a corroboração,
como um testemunho excepcional de que Claire anda na verdade, porque se não
significa que Napoleão nunca existiu, é preciso tomá-lo como a asserção convencida
de que nenhum de nós existe: foi, sem dúvida, o riso que nega a realidade de
tudo, e este é ainda o momento em que, se o recordo, algo treme e se arrepia no
meu interior». In Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados,
Ediciones Destino, 1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com
interpolações mágicas, Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.
Cortesia de Relógio d’Água/JDACT