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«O importante não é aquilo que fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos
do que os outros fizeram de nós». In Jean.Paul Sartre
«(…) De como o coronel se achou de amores por dona Margarida.
Falemos do ano treze, depois de mil e novecentos, do antigo
Reino de Portugal, renegado havia pouco mais de dois anos e meio. Não importa
que num país de cinco milhões, trezentos mil republicanos, intoxicados como
sempre por ideais estrangeiros, tenham sido bem sucedidos na imposição das suas
filosofias, importa é que homens corno o coronel, ainda não tão graduado na
altura, creram e lutaram para que qualquer um, que assim o ambicionasse,
pudesse colocar o país em mares bem mais calmos, de forma a navegarmos ordeiramente
rumo ao progresso. O coronel servia governos e não políticas, por isso nunca se
apercebeu que já no ano treze deste século XX a jovem República andava nas mãos
dos oportunistas e dos endinheirados em jogos de poder, maquinações e
arrioscas. O coronel, ainda não coronel à época, andava ocupado a minar as
incursões monárquicas que, vá-se lá saber porquê, ainda viam goradas as
hipóteses de recolocação no trono de Manuel II. O povo estava dividido, mas sabia
o coronel que o povo anda para o lado da locomotiva, o que era preciso era um
bom líder e todos o seguiriam, talvez tivesse chegado essa hora. Afonso Costa
ascendera ao governo através de uma coligação, a União Sagrada, talvez ela
consagrasse de novo o país às graças do Senhor, de quem andava arredado. Mas
não sabia o coronel que os grandes homens para os quais abriu caminho queriam
era encher os seus bolsos, porque é isso a democracia, usar o dinheiro dos
outros em benefício próprio ou dos seus e preparar o caminho para que as suas
gentes os substituam no poder. Contudo, nesta imberbe República eram sete cães
a um osso, todos a pretenderem o mesmo e quanto mais se dividir menos fica para
usufruto próprio. Isto ainda daria estrondo, governos a cair a torto e a
direito até que todos se unissem sob a lei do chicote ou fizessem um pacto para
ganhar algum de quando em vez. Preferiram a lei do chicote que ainda hoje
impera, mas não usamos chicote no sentido pejorativo, Deus nos livre, é o
caminho que escolhemos com tino, um homem a governar todos até que bem entenda
deixar de o fazer, e que não permita que se fale mal dele, pois não é
brincadeira governar um país das dimensões do nosso.
Perdoem-nos o trato ligeiro com que abargantamos esta fase da História
de Portugal, coisas mais profundas estavam em jogo, nenhuma mais importante do
que o dinheiro, no entanto, mas as ideologias tombavam e renasciam a uma
velocidade estonteante. É o problema das revoluções, pretendem sempre
substituir por inteiro os regimes precedentes em vez de pouparem o que de bom
têm, pois, por muito maus que fossem, e não era o caso, encontrar-se-ia sempre
algum ponto positivo que valesse a pena continuar a implementar, contudo,
falava-se do trato ligeiro, devido ao facto desta ser a história do coronel e
não a de Portugal, prossigamos, portanto, com o fio da meada. Também o coronel
usufruía das probidades da democracia, pois o governo decretara o serviço
militar obrigatório a todos os mancebos com idade para servir a pátria. Deixara
também de ser possível apresentar um substituto para o lugar do visado, segundo
a lei do recrutamento, prática corrente entre os endinheirados. Porém, em troca
de uma quantia, podia colocar-se um Não Apto na cédula militar, prova
documental da incapacidade do jovem em servir a nação. Ganhara muito dinheiro o
coronel com esta rotina beneficiária, os homens entravam a rodos no exército,
pelo que alguns a menos não faria diferença. Certo dia, apareceu um homem na
divisão de inspecção onde o nosso coronel fazia por aumentar o seu pecúlio, trazia
consigo um jovem gaiato, muito bem vestido, mas atemorizado. Pudera, nunca
estivera tao perto de tanta vulgaridade, sebosos, sebentos, desdentados,
desgrenhados, esguedelhados, piolhosos, pulgosos, badalhocos, putridos,
asquerosos e todos os adjectivos e mais alguns para rotular todos aqueles que o
cercavam, aos olhos dos gaiatos e não aos nossos, bem entendido». In
Luís Miguel Rocha, Um País Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN
972-731-176-8.
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