Cortesia
de wikipedia e jdact
Da
Noite
[…]
Penso linhos e unguentos
Para o coração machucado de
Tempo.
Penso bilhas e pátios
Pela comoção de contemplá-los.
(E de te ver ali
À luz da geometria de teus actos)
Penso-te
Pensando-me em agonia. E não
estou.
Estou apenas densa
Recolhendo aroma, passo
O refulgente de ti que me restou.
Que te demores, que me persigas
Como alguns perseguem as tulipas
Para prover o esquecimento de si.
Que te demores
Cobrindo-me de sumos e de tintas
Na
minha noite de fomes.
Reflecte-me. Sou teu destino e
poente.
Dorme».
Amavisse
«Porco-poeta que me sei, na
cegueira, no charco
À espera da Tua Fome, permita-me
a pergunta
Senhor dos porcos e de homens:
Ouviste acaso, ou te foi familiar
Um verbo que nos baixios daqui
muito se ouve
O verbo amar?
Porque na cegueira, no charco
Na trama dos vocábulos
Na decantada lâmina enterrada
Na minha axila de pêlos e de
carne
Na esteira de palha que me
envolve a alma
Do verbo apenas entrevi o
contorno breve:
É coisa de morrer e de matar mas
tem som de sorriso.
Sangra, estilhaça, devora, e por
isso
De entender-lhe o cerne não me
foi dada a hora.
É verbo?
Ou
sobrenome de um deus prenhe de humor?
Na
péripla aventura da conquista?
Carrega-me contigo,
Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã, a luz,
o impossível
Porque de barro e palha tem sido
esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de
traçado
Ou de complicada geografia, sem
nenhuma bagagem
Hei-de levar apenas a vertigem e
a fé:
Para teu corpo de luz, dois
fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E
movediças
Embaçadas vias de Ilusão.
Não cantei quotidianos. Só cantei
a ti
Pássaro-Poesia
E a paisagem-limite: o fosso, o
extremo
A convulsão do Homem.
Carrega-me
contigo
No
Amanhã.
Como se perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas
douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo
brusco
Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas
profundas.
Como se fosse tudo o mais me
permitisses,
A mim me fotografo nuns portões
de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída
e mínima
No dissoluto de toda desespedida.
Como se te perdesse nos trens,
nas estações
Ou contornando um círculo de
águas
Removente ave, assim te somo a
mim:
De
redes e de anseios inundada.
De uma fome de afagos, tigres
baços
Vêm se juntar a mim na noite oca.
E eu mesma estilhaçada, prenhe de
solidões
Tento voltar à luz que me foi
dada
E sobreponho as mãos nas
veludosas patas.
De uma fome de sonhos
Tento
voltar àquelas geografias
De um Fazedor de versos e sua
estada.
Memorizo este ser que me sou
E sobre os fulcros dentes, ali
É que passeio e deslizo a minha
fome.
Então se aquietam de pura
madrugada
Meus tigres de ferrugem. As
garras recolhidas
Como
se mesmo a morte os excluísse».
[…]
Hilda
Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte,
Literatura brasileira século XX, Wikipédia.
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