quarta-feira, 26 de junho de 2019

Bala Santa. Luís Miguel Rocha. «Quando estava prestes a desistir e tentar outra porta, ouviu passos pesados, provindos do interior da casa, a aproximarem-se da entrada. O ranger dos gonzos…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Jerusalém
«(…) Prosseguiu no trilho histórico, pejado de casas e lojas, deixando a multidão dos crentes seguir o resto da História lá para trás, na Via Dolorosa, passando, sem deitar um segundo olhar, à primeira estação da Cruz, no Mosteiro da Flagelação, onde o Cristo foi condenado e barbaramente torturado pelos legionários a soldo de Pôncio Pilatos. Um pouco mais adiante, o homem cortou à esquerda, na Qadisieh, repleta de casas baixas e portas fechadas. Bateu na terceira, do lado esquerdo. Ali teria de perguntar pela direcção. Quem abriu foi uma mulher de tez escura, não lhe escapou a cor, apesar do pouco que as vestes deixavam entrever. Assim manda a tradição muçulmana, que as mulheres nada mostrem, pois o homem não pode ser tentado pela carne da fêmea e, se o for, a culpa é, naturalmente, dela. Perdoe-me a intromissão, escusou-se. Terá a gentileza de me informar onde fica a casa de Abu Rashid? A reacção da mulher foi um intempestivo bater com a porta, deixando-o especado a olhar a madeira lascada pelos anos. Das duas, uma, ou é esta a casa de Abu Rashid ou não.
Quando estava prestes a desistir e tentar outra porta, ouviu passos pesados, provindos do interior da casa, a aproximarem-se da entrada. O ranger dos gonzos revelou um homem robusto com barba e bigode grisalhos, túnica da cor do vinho tinto a cair-lhe sobre o corpo, marcas da sempre honrosa tradição. Boa tarde, cumprimentou o estrangeiro. Saberá dizer-me onde fica a casa de… Sim, sim…, resmungou o velho barbudo, impaciente, inundando o ar com perdigotos. Fitou o estrangeiro de fato negro, avaliou a meia-idade e virou costas, deixando a porta aberta. Deixa os sapatos à entrada. Não levou muito tempo a acatar as ordens do proprietário e descalçou-se. Sentia-se um pouco suado e a precisar de um banho, mas não ia virar costas ao trabalho só por se sentir desconfortável. O seu bem-estar estava muito abaixo na lista de prioridades. Entrou na casa de forma respeitosa, desde muito cedo aprendera que reverenciar os outros traz benefícios a curto, médio e longo prazo. A luz penetrava livremente pelo topo da casa que, à excepção da porta que voltava a estar fechada, deixava o ar entrar e arejar o corredor e as divisões. Sentiu vários olhares femininos sobre a sua nuca, apesar de não os conseguir ver. Perscrutou alguns risinhos tímidos por detrás das cortinas.
Quedou-se a meio do corredor. Não queria ser indelicado e entrar onde não devia. Aguardou um sinal do velho, que chegou em forma de convite. Shai?, ouviu perguntar de uma antecâmara mais ao fundo do iluminado espaço. Encaminhou-se nessa direcção e deu com ele sentado num cadeirão de baloiço, a fumar um cigarro. Uma mulher descoberta abana um leque ao seu lado, afugentando o calor repentino do final da tarde e secando com um lenço de tecido as gotículas de exsudação que teimam em formar-se na testa dele. Porventura, a sua esposa ou uma delas. Sim, aceito, respondeu o estrangeiro. Obrigado. Um leve gesto para a jovem mulher, e esta saiu esbaforida para cumprir o mandado, deixando a canícula apoderar-se do seu lindo marido.
E cobre essa cabeça, gritou o homem na entoação certa para que a ordem fosse ouvida. Temos visitas. O estrangeiro fitou-o durante alguns segundos, com a preocupação de não se mostrar inconveniente, contudo, o velho muçulmano rodeava-se de uma aura de mistério tão cativante que dificultava qualquer movimento». In Luís Miguel Rocha, Bala Santa, Cavalo de Ferro Editores, Paralelo 40, Lisboa, 2007, ISBN 978-989-813-400-4.

Cortesia de CFerro/JDACT