quarta-feira, 5 de junho de 2019

A Sibila. Agustina Bessa Luís. «Vivia assaltado por vários males, e, na realidade, o possuir uma mulher jovem que não lhe impunha folias elegantes, viagens, um nomadismo impenitente de exibição e de gozo, parecia-lhe providencial»

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«(…) Fez-se uma fidalga. Um ano depois, o marido obtinha um título, conde de Monteros, depois de ter imposto o apelido Fattoni, espiolhado numa genealogia que os seus brios elegiam simpatizante. Elisa Aida Fattoni, condessa de Monteros, possuía então preceptora inglesa, e tinha lições de piano com um compositor que se deslocava do Porto para lhe dedicar um pequeno concerto no Pleyel do seu salão abobadado, com grinaldas de gesso circundando a meia altura as paredes cheias de frescos das fábulas de La Fontaine. O palacete era um monumento meio barroco protegido de para-raios cuja platina fora avaliada ao preço da terra bastante para sustentar uma família. Balbina assistira ao casamento, dos bastidores, ajudara a ataviar a noiva, que era magrinha, escura, e em cuja cabeça a coroa de flores de laranjeira fazia o efeito duma rodilha. Os esplendores da sua alcova, com o tecto onde adejavam cupidos e mariposas, e o tapete Savonnerie fornecido por um museu, ficaram lendários. Dizia o de Lago, loiro e pomposo, amador de bons ditos como seu pai, que o casal lhe dava a impressão de baratas numa loja de bricabraque. Mas foi ele o primeiro a fazer a corte à condessa Monteros, quando, cinco anos depois, regressada da Itália e Constantinopla, franqueou o seu salão às notabilidades. Tinha-se feito bela, com essa beleza que resulta mais duma aliança perfeita com o que é moda, inesperado, actual, do que de verdadeiros encantos físicos. Tinha o ar duma adolescente de Proust, com os seus vestidos de popeline cor-de-rosa, túnica panier listada de branco, e os pequenos chapéus de amazona onde esvoaçavam véus que se confundiam no ar cinzento. Estina, que tinha sido sua companheira na velha escola onde com ela aprendera caligrafia e croché, viu-a e não a reconheceu.
É a Lisa, informou a tia Balbina, impante, ruborizada, feliz, porque a condessa, se não lhe pedia a bênção submissamente como dantes, mostrava grande apego às antigas relações, e gostava de passear a pé e visitar como que casualmente as velhas amigas de Água-Levada. Com o vestido curto, de barra de folhos e que deixava ver as botas verdes ou cor de mel, abrigando-se sob um guarda-sol minúsculo, era muito notada nos caminhos que percorria devagar, parando sob as latadas de morangueiro, extasiando-se com o perfume dos cachos que a tentavam muito e faziam gratificar um garoto para que trepasse nos lódãos, a colher para ela os cachos empoeirados. O marido gostava de a ver fidalga, muito arreada de luxos, de prendas, de brilhantes, e fazendo sala entre uma caterva de criaturas de linhagem ou de dinheiro que acudiam aos seus jantares, para os quais o peixe se pagava com libras e viajava em reservatórios revestidos de junco, nas diligências. Mas Elisa ficava indiferente a tais esplendores; entranhava-se-lhe o hábito da grandeza, a ponto de não destrinçar valores, e usar com perfeito descaso a sua manta de marta como ninho de gatos recém-nascidos e, mais tarde, entregar um enorme Rolls Royce com faróis de prata, para poleiro de galinhas. Enquanto rapariga, ela tomava como divertimento mascarar-se de camponesa e, com uma toalha de renda pelo rosto, comparecer nas eiras das desfolhadas, gozando a sensação, o gáudio e as agridoces ilusões dos moços que tentavam saber-lhe a identidade. Que china pueblana você me saiu!, recriminava o conde.
Vivia assaltado por vários males, e, na realidade, o possuir uma mulher jovem que não lhe impunha folias elegantes, viagens, um nomadismo impenitente de exibição e de gozo, parecia-lhe providencial. De resto, Elisa só com o tempo se fez coquete e provocadora de cortesias; mas já estava viúva nessa altura, poupando assim ao velho tio o rabiar dos predestinados psicólogos. Esta personalidade de mulher acompanhou muito a meninice de Quina. Ouvia falar dela e impacientava-se, pois a achava um mito provocado por uma desprezível adulação. Não a vira nunca, mas o seu nome era o bastante para a fazer empalidecer; nos seus olhos, que as pregas das pálpebras desfeava muito, havia um cintilar de rancor, atenuado com uma ironia. Que me interessa essa gente?, dizia. A quem pode interessar é ao José do Telhado». In Agustina Bessa Luís, A Sibila, 1954, Relógio d’Água, 2017, ISBN 978-989-641-747-5.

Cortesia de Rd’Água/JDACT