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«O importante não é aquilo que
fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós». In
Jean.Paul Sartre
«(…) Os outros voltam às limpezas, bem mais limpos estão dos
desejos mundanos, mas não dos da alma, isso só a eles importa e se não se
apoquentam eles muito menos o faremos nós. Continua a limpar o pó Laurinda
enquanto Alfredo segue pelo corredor, em direcção à cozinha, ver a sua
Conceição Genoveva. Sente súbitas saudades da sua gorda, mãe do seu único
filho, que ainda só seis meses tem. Laurinda é bem mais nova, mais fresca, como
se viu, e mais magra, com uma grande abertura de ideias mas com os mesmos ideais
porque é o que espera quem nasce desventurado e sem refúgio, ficar-se burro de
instrução até ao fim da vida ou subir à custa de ardis para saciar mais os
bolsos, porque se há coisa que todos fazemos é abafar o tes…, uns mais do que
outros, mas todos alguma coisa. Assim seja para quem puder, só alguns, poucos,
sairão da sumidouro rumo ao píncaro, a maior porção ficará pelo trabalhos duros
que os abastados não fazem porque têm dinheiro para pagar, pouco, ao burro
pobre que dele precisa para pôr comida na boca dele e da família. Estes que
aqui trabalham nem se podem chorar, não ganham moedas mas comem e bebem à
discrição, dormem em bons colchões e não é trabalho que mate e ainda têm
direito a alívios destes, como vimos mas não vamos dizer a vivalma ou então que
atire a primeira pedra, como disse Jesus Cristo noutras circunstâncias
parecidas, o que de nós nunca o fez. Poucas ou nenhumas se atirariam porque
todos gostamos do mesmo e de andar por fora a debicar e a fazer modernas
experimentações como as que viu o coronel há pouco e que pensava ser impossível
no ramo da reprodução. Somos testemunhas e não mirones e não falaremos mais
disto.
Mariana Silveira ainda não se preocupa com estas coisas, mais
importante é despicar, formosa e fresca, medrar para a vida sem problemas de
saúde, ela que dorme ainda na alcofa, serena e amansada como a está a ver o pai
e Josefina, que ainda não saiu de cerca dela desde que acordou pela manhã,
muito antes das outras, que ainda dormem. Não tens escola hoje?, pergunta o pai
a lembrar-se das horas. Hoje é sábado, pai. Tens razão, ando perdido. Gostas da
tua irmãzinha? Muito. Vou-lhe ensinar tudo o que sei. E já sabes muito? Sei que
chegue. É danada esta, pensa o coronel, gosta de resposta na ponta da língua,
sai a ele esta Josefina, ou talvez não, é mesmo a cara e o carácter da tia que
lhe deu o nome, a sua cunhada, espevitada e frontal porque não adianta mandar
dizer por outro aquilo que tem de sair de nós. As tuas irmãs, já acordaram? Vou
ver. Já é hora de arribarem.
Sai Josefina rumo ao quarto dela e das outras que ainda não as
vimos mas havemos de ver, o tempo sobeja para onde vamos e muitos anos para
confiar a todos os que de nós se interessem por esses factos. Com tanta
algaraviada nem demos pelo acordar de dona Margarida, que já atenta no cenário.
Coisa como esta nunca viu, o seu coronel a apreciar sua filha Mariana Silveira
logo na manhã do nascimento. Com as outras a nada disto se assistiu, ficou
semanas fora do lar a curar a ira, que estranheza esta que passa desde esta
noite a mudar-lhe o esposo para melhor. Bom-dia, senhor meu marido. Bons-dias
para si também. Deixou-a dormir bem? Muito bem. Não chorou um segundo. Prezo
por si. Esta noite dormirei consigo se já não houver problema. Nunca houve
senhor meu marido, mas estimo que me tenha deixado descansar esta noite. Claro
que pode dormir, mas dada a minha situação sabe que nada poderá... Bem sei
quanto a isso tudo o que há a saber. Não a molestarei nesse aspecto. Vou agora
ao quartel ver como se apresentam as coisas. Só mais uma coisa senhor meu
marido. Dizei. Fiz promessa à Virgem de lá ir acender umas velas se tudo
corresse pelo melhor. À Virgem de Fátima? Sim, meu senhor, prometi lá ir no
treze de Maio. Prometeu que eu iria?
Claro que não, senhor meu marido. Prometo só por mim para não enfastiar
outros, mas posso ir só com o Albino e as crianças. Nada disso, eu a
acompanharei e às crianças no dia treze. Descansai agora. Agradeço-lhe, senhor
meu. Um beijo dá na boca de sua amorável esposa, a imaginar outras coisas que
lhe ornam a lembrança, e sai do quarto. Este homem está maluco, pensa dona
Margarida, acometida em pensamentos toscos de imaginação cheia. Não se imagine
mais porque a causa está neste quarto, naquela alcofa a dormir, a futura dona
que dobrou o despiedoso coronel à nascença, neste dia três de Abril do ano que
todos sabemos, muitos mais virão adiante deste, pois que venham, das horas dos
dias se faz a história e nascem os heróis depois dos vilões porque para haver
herói tem de existir vilão primeiro ou não seriam necessários actos heróicos. À
frente se verá de que é feita esta Mariana Silveira, se de matéria vil ou
varonil, um pouco das duas se combina agora vinda de quem vem, ela saberá qual
lhe toca quando chegar à hora de deliberar, deixemo-la dormir ora e a todos os
que de nós invejarem». In Luís Miguel Rocha, Um País Encantado,
Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN 972-731-176-8.
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