«(…) Fez-se uma fidalga. Um ano depois, o marido obtinha um
título, conde de Monteros, depois de ter imposto o apelido Fattoni, espiolhado
numa genealogia que os seus brios elegiam simpatizante. Elisa Aida Fattoni,
condessa de Monteros, possuía então preceptora inglesa, e tinha lições de piano
com um compositor que se deslocava do Porto para lhe dedicar um pequeno
concerto no Pleyel do seu salão abobadado, com grinaldas de
gesso circundando a meia altura as paredes cheias de frescos das fábulas de La Fontaine. O
palacete era um monumento meio barroco protegido de para-raios cuja platina
fora avaliada ao preço da terra bastante para sustentar uma família. Balbina
assistira ao casamento, dos bastidores, ajudara a ataviar a noiva, que era
magrinha, escura, e em cuja cabeça a coroa de flores de laranjeira fazia o
efeito duma rodilha. Os esplendores da sua alcova, com o tecto onde adejavam
cupidos e mariposas, e o tapete Savonnerie fornecido por um museu, ficaram
lendários. Dizia o de Lago, loiro e pomposo, amador de bons ditos como seu pai,
que o casal lhe dava a impressão de baratas numa loja de bricabraque. Mas foi
ele o primeiro a fazer a corte à condessa Monteros, quando, cinco anos depois,
regressada da Itália e Constantinopla, franqueou o seu salão às notabilidades.
Tinha-se feito bela, com essa beleza que resulta mais duma aliança perfeita com
o que é moda, inesperado, actual, do que de verdadeiros encantos físicos. Tinha
o ar duma adolescente de Proust, com os seus vestidos de popeline cor-de-rosa,
túnica panier listada
de branco, e os pequenos chapéus de amazona onde esvoaçavam véus que se
confundiam no ar cinzento. Estina, que tinha sido sua companheira na velha
escola onde com ela aprendera caligrafia e croché, viu-a e não a reconheceu.
É a Lisa, informou a tia Balbina, impante, ruborizada,
feliz, porque a condessa, se não lhe pedia a bênção submissamente como dantes, mostrava grande
apego às antigas relações, e gostava de passear a pé e visitar como que
casualmente as velhas amigas de Água-Levada. Com o vestido curto, de barra de
folhos e que deixava ver as botas verdes ou cor de mel, abrigando-se sob um
guarda-sol minúsculo, era muito notada nos caminhos que percorria devagar,
parando sob as latadas de morangueiro, extasiando-se com o perfume dos cachos
que a tentavam muito e faziam gratificar um garoto para que trepasse nos
lódãos, a colher para ela os cachos empoeirados. O marido gostava de a ver
fidalga, muito arreada de luxos, de prendas, de brilhantes, e fazendo sala
entre uma caterva de criaturas de linhagem ou de dinheiro que acudiam aos seus
jantares, para os quais o peixe se pagava com libras e viajava em reservatórios
revestidos de junco, nas diligências. Mas Elisa ficava indiferente a tais
esplendores; entranhava-se-lhe o hábito da grandeza, a ponto de não destrinçar
valores, e usar com perfeito descaso a sua manta de marta como ninho de gatos
recém-nascidos e, mais tarde, entregar um enorme Rolls Royce com faróis de prata, para poleiro de
galinhas. Enquanto rapariga, ela tomava como divertimento mascarar-se de
camponesa e, com uma toalha de renda pelo rosto, comparecer nas eiras das
desfolhadas, gozando a sensação, o gáudio e as agridoces ilusões dos moços que
tentavam saber-lhe a identidade. Que china pueblana você me saiu!, recriminava o conde.
Vivia assaltado por vários males, e, na realidade, o
possuir uma mulher jovem que não lhe impunha folias elegantes, viagens, um
nomadismo impenitente de exibição e de gozo, parecia-lhe providencial. De
resto, Elisa só com o tempo se fez coquete e provocadora de cortesias; mas já
estava viúva nessa altura, poupando assim ao velho tio o rabiar dos
predestinados psicólogos. Esta personalidade de mulher acompanhou muito a
meninice de Quina. Ouvia falar dela e impacientava-se, pois a achava um mito
provocado por uma desprezível adulação. Não a vira nunca, mas o seu nome era o
bastante para a fazer empalidecer; nos seus olhos, que as pregas das pálpebras
desfeava muito, havia um cintilar de rancor, atenuado com uma ironia. Que me
interessa essa gente?, dizia. A quem pode interessar é ao José do Telhado». In
Agustina Bessa Luís, A Sibila, 1954, Relógio d’Água, 2017, ISBN
978-989-641-747-5.
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