O Rei de Marfim
«(…) Por areias e
papirais marginam o rio sagrado e junto de frescas nascentes avistam enfim, a
brilhar ao sol, o palácio das portas de cedro e janelas de cristal, e ante o
trono encastoado de safiras ajoelham e beijam a mão do Preste João das Índias...
ai menina! Dizem que no regresso lutou com os gigantes de um só olho e com a
dextra alçando a cruz da espada fez frente aos enleios da feiticeira circe... o
infante, minha dona, não é criatura deste mundo ... Tu ouvias, calado, a
cismar, pensavas já, talvez, que um dia haverias de enviar teus embaixadores a
esse rei cristão das terras distantes... mas a tua tia Filipa ali estava a
falar vestida de negro, cabelo negro, o poço dos olhos negrume de água salobra
fetos e salamandras... saíra à mãe, ao sangue de Urgel... sua irmã Isabel, a
tua mãe, dizia ela que era branca, esguia, loira, tu não chegaste a
conhecê-la...
Era verdade, senhor meu pai? Ele
sorria entre sisudo que sempre se mostrava. Não, não era verdade, invenções de
simples e crédulos, de servos e gente do povo, de algum jogral cego a cantar
fadários nos arcos da rua Nova, com seu espantado respeito e maravilhamento,
como se estivessem a imaginar seres fabulosos, cosiam lá entre si ao que ouviam
e iam passando de boca a orelha acrescentamentos e remendos de fantasia. Não,
saíra do reino por fins de Junho de vinte e cinco, depois de ter ido à corte
tomar a bênção do rei seu pai e despedir-se do irmão Duarte, que ajudava já nas
canseiras da governação, entrara em Castela por alfaiates e ao fim de três
jornadas atingia Ciudad Rodrigo, subira até Valladolid, corte de poetas, a ver
em seu paço o rei João primo co-irmão, longas caminhadas de paladinos...
Meu pai falava mas o conto por
vezes era completado, em hora de recreio, na roda de meus irmãos Pedro e Jaime,
com cores mais vivas e a rudeza de palavras não dizidoiras, a brejeirice dos trovadores,
ouvidas aos cavaleiros sem a presença feminina... fungavam risotas ao
pronunciá-las, eu até gostava... porque é que a aia as queria esconder dos meus
ouvidos? Não as declaravam diante das damas nos serões reais?..., com seus
quarenta cavaleiros e homens de pé, a carriagem bem aparelhada, seguia o
infante pelas sendas do vento e da água, por florestas cerradas, vales
descobertos, desfiladeiros cortados no cerne de montanhas de lobo, urso e
javali, descansando no desconforto de albergues ermos, em catraias de portelas
onde sob o cascalho esfarelado e nas frinchas das penhas o tojo rasteiro, a
urze, a carqueja, o espinheiro, enregelados da nortada ou queimados do Suão,
sugam a última lentura da terra. Não, não se tratava de peregrinação de
cavaleiros da Távola Redonda em demanda do Santo Graal nem desafio de magriços
e seus companheiros para desagravo de damas... pelo caminho iam conversando:
Quando chegares a Inglaterra, infante, receberás a garroteia, estou em crer... Cala-te,
Álvaro Vaz, também terás a tua, como teu pai». In Fernando Campos, A Esmeralda Partida,
1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.
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