quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Jaime Cortesão. Crónicas Desaparecidas, Mutiladas e Falseadas. «Na “Crónica de D. João II”, isto é, quando os Descobrimentos dominam toda a política do Estado, apenas dois ligeiros capítulos lhes são expressamente dedicados. O ajustamento e simultaneidade destes factos bastaria, que uns se explicam pelos outros, ou melhor, que tanto o desaparecimento das crónicas como o silêncio de Rui de Pina sobre os Descobrimentos…»

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«Uma outra série de razões, que passamos a enumerar, nos confirma inteiramente nessa explicação do enigma.

a) Antes de mais nada convém observar que, pelo que diz respeito à obra de Azurara, apenas desapareceram as crónicas que certamente se referiam a Descobrimentos. De todas as restantes e que hoje se conhecem existiam, antes da impressão, e existem numerosos apógrafos nas Bibliotecas Nacional, Municipal do Porto, da Academia de Ciências e Torre do Tombo.

b) Na “Crónica de D. Duarte”, de Rui de Pina, não se fala de Descobrimentos.

c) Na de Afonso V, do mesmo cronista, apenas um capítulo se refere muito ligeiramente à grande empresa nacional. Foi o mesmo Góis quem primeiramente o observou: «… porque nas crónicas del rei D. João e del rei D. Duarte, seu filho, nenhuma cousa se trata do que toca a estes descobrimentos e na del rei D. Afonso quinto, seu neto, em um só capítulo, onde se escreve o falecimento do infante D. Henrique, conta este cronista, brevemente, algumas cousas das que até então passaram…»

d) Na “Crónica de D. João II”, isto é, quando os Descobrimentos dominam toda a política do Estado, apenas dois ligeiros capítulos lhes são expressamente dedicados.

e) Sobre as explorações atlânticas, a ocidente dos arquipélagos dos Açores, Madeira e Cabo Verde, realizadas desde o reinado de Afonso V e continuadas em tempo de João II, nem uma palavra existe nas respectivas crónicas. Todavia, uma dessas expedições, ordenada por este último monarca, e antes da primeira partida de Colombo, a de Pedro de Barcelos e João Fernandes Labrador, à América do Norte, alcançava a «parte do norte», segundo os documentos autênticos do tempo.

O ajustamento e simultaneidade destes factos bastaria, se outras razões mais poderosas não tivéssemos, a evidenciar que uns se explicam pelos outros, ou melhor, que tanto o desaparecimento das crónicas como o silêncio de Rui de Pina sobre os Descobrimentos se filiam no segredo que envolveu desde o começo a empresa nacional. As crónicas que versavam os Descobrimentos foram sequestradas ou destruídas, tal coimo os nossos grandes feitos navegadores desapareceram das obras de Rui de Pina.

Cortesia de wikipedia

Nem este assumiria à grave responsabilidade de chamar suas as alheias crónicas, quando muitos testemunhos o poderiam delatar, se lhe não tivessem dado o encargo de as “emendar”, como diz Barros, isto é, de apagar delas tudo o que pudesse informar os estranhos sobre as causas íntimas e muitos dos resultados da empresa nacional.
Qual a alma vil e peca de cronista, que na sua história de motu-próprio calasse ou diminuísse as nossas maiores façanhas, se alguma grave razão de Estado o não tivesse coibido?

Como explicar o desaparecimento duma série tão notável de crónicas se uma razão comum o não justificasse?

Em abono desta opinião devemos relembrar ainda alguns factos semelhantes e já hoje presentes.
f) Da série de crónicas desaparecidas ou caladas, durante o tempo em que os Descobrimentos foram o eixo de toda a vida nacional, devemos aproximar o mistério que nesta mesma época envolveu os livros que versavam a arte náutica, em que foram os mestres da Europa. O mais notável deles, o “Regimento do Astrolábio”, uma espécie de manual prático para ensinança de marinheiros, e que estes dois cronistas igualmente calaram, tornou-se tão raro que da primeira edição conhecida só há poucos anos tivemos notícia pelo exemplar único da Biblioteca de Munique que Joaquim Bensaúde estudou e publicou pela primeira vez. O mesmo ilustre historiógrafo conclui que o desaparecimento total duma primeira edição dessa obra e a extrema raridade da segunda, foram deliberadamente provocados.

g) Os documentos da cartografia portuguesa do século XV desapareceram também inteiramente.

h) A mesma sorte ainda tiveram muitos dos documentos originais, que mais nos poderiam elucidar e se referiam a terras ou ilhas descobertas, as instruções dadas aos navegantes e os seus respectivos relatórios.

Cortesia de wikipedia 

Uns e outros factos têm sido explicados pela mesma razão: o segredo nacional.
Finalmente outras razões demonstram a nossa afirmação.
i) Quem meditar na compreensão da história que sucessivamente tiveram Lopes, Azurara e Pina depressa compreenderá que este despojou as crónicas daqueles, ao “emendá-las”, de muitos dos factos e pormenores, que encarnam o povo na vida da nação e tornam forte e palpitante o seu relato. Quem ler a “Crónica de D. João I”, de Fernão Lopes, na parte que hoje conhecemos, e onde se sentem tumultuar os interesses e paixões das classes e onde a burguesia e os mesteres, mais organizados, substituindo-se a uma nobreza dividida, inspiram, servem e amparam os heróis nacionais; ou as crónicas da Guiné e dos condes de Meneses, de Azurara, onde tantas vezes transparecem os grandes objectivos nacionais, e ainda a intervenção das classes, posto que sem o vigor daquele, mas sempre tão minuciosa, tão humanas em certos passos e tão severas por vezes no juízo dos homens, e as comparar às crónicas de Rui de Pina, maiormente as do “Africano” e do “Príncipe Perfeito”, onde a nação se apaga e mal rasteja como uma sombra aos pés do trono, anémicas, escassas, subservientes, constatará com dor que as deste último são um pálido resumo das crónicas dos seus antecessores, que ele aproveitou, e representam com a sua monstruosa deformação uma imensa e irremediável perda para a história nacional (247)». In Jaime Cortesão, A Expansão dos Portugueses no Período Henriquino, Portugália Editora, Lisboa 1965.

Cortesia de Portugália Editora/JDACT