Cortesia de costapinheiro
«João Manuel era talvez nessa época o mais poderoso senhor de Castela. O seu pai tinha sido o último dos doze filhos do rei Fernando, o ‘Santo’, e criara--se assim uma relação entre o primeiro e o último que, apesar de inversa, os punha a ambos em destaque. É possível que tenha sido esse destaque que tenha levado o fidalgo a escrever ao rei de Portugal propondo-lhe o casamento da filha, Constança Manuel, com o infante herdeiro da coroa. Demasiado próximo e demasiado dentro dos problemas da coroa de Aragão, que enfrentava na altura um poderoso movimento de sucessão, que se podia rapidamente abeirar da crise, João Manuel teria visto na coroa de Portugal uma saída digna para o problema marital da filha. Portugal era na altura uma coroa inconsistente, que não tendo ainda identidade definida e bem orientada, não era de modo nenhum um estado fantasma, dominado mais pelos concluios de casas estrangeiras do que pelos seus próprios interesses. Tinha a imensa vantagem de não ser um enclave, como o era Navarra, pois, a sua fronteira litoral, a mais ampla de todas, se nada lhe dava para além dum reduzido comércio externo, em nada comparável ao Catalão ou ao das Repúblicas iralianas de então, permitia-lhe porém estar à vontade. O oceano era, de todas as maneiras, um território seu.
Dizia assim a missiva que o rei Afonso de Portugal recebeu nos paços de Évora:
- «Dom Joam Manuel por graça de Deus filho de Manoel, irmão do muy sábio e querido Afonso X, Rey de Castela e Leão. Ao temido varão e poderoso príncipe el Rey de Portugal e do Algarve, em cuja graça e verdadeira amizade me recomendo. Assim como a qualquer homem é aprazível conhecer o peito do amigo, assim também é deleitável descobrir-lhe o próprio coração. E porque no casamento da vossa filha Maria, como já decerto sabeis, de alguma coisa vos arrependeis, vos digo que não me sai do coração a afronta de el Rey de Castela ao repudiar a minha filha Constança. Na companhia dos ofendidos e na multiplicação dos queixosos buscam seu alívio os magoados. Mas, aqui vos digo, a menina é o mais lustroso esmalte de fermosura e quem sabe se desvio foi da própria fortuna o não consentir esta em tal união. Com esta resignação vai no meu pensamento para vosso filho, infante Dom Pedro de Portugal e do Algarve, sobre o qual a fortuna consente ultraje e em cujo casamento, antes de toda e qualquer união matrimonial, vós deveis hoje pôr todo o vosso cuidado e preocupação, pelo muito que a sucessão da coroa importa à conservação do reino, O leve imagina que tudo sabe, o louco que tudo pode, mas só quem não errou não tem a prudência e o ensino de quem já foi arguido e castigado. Digo-vos mais Senhor; Dona Constança, bisneta do grande Fernando, o ‘Santo’, é pérola que o sol não perde de vista e que bom engaste será no fino ouro da coroa portuguesa. Concluo em vos dizer que no casamento de nossos dois filhos me apraz tudo o que vos aprouver, como pai e como rei».
Cortesia de wikipedia
Foi esta carta escrita em Novembro de 1330, quando as primeiras chuvas, muito tímidas e fugazes, caíram sobre os palácios de Albacete, orvalhando as varandas lavradas de Múrcia. O céu tinha a cor primaveril e os pássaros chegavam das marinas do Sul em grandes bandos, indiferentes à força setentrional do Outono. A tepidez primaveril do mês obrigava as mulheres a refugiarem-se, à tarde, à sombra de grandes toldos que eram montados debaixo dos álamos do parque. Corriam, nessa altura, entre as grandes casas nobres de Castela, os primeiros rumores da esterilidade da formosíssima Maria e era já pública a mancebia com que o rei, apenas com 19 anos, vivia com Leonor de Gusmão, que lhe começou logo a dar filhos. Eram, por isso, verdadeiros os doestos de João Manuel, a sorte da formosíssima Maria começava a preocupar o pai. Leonor de Gusmão era filha de Pedro Nunes de Gusmão e de Beatriz Ponce de Leão e tinha sido casada com João Velasco, de quem tinha enviuvado. Uniam-se pois nela algumas das casas nobres mais importantes da Meseta e o seu recato tímido e estudado muito contribuíram para que o rei a tratasse como verdadeira senhora e a rodeasse duma pequena corte, da qual ela era a rainha O concubinato era, por outro lado, uma forma de ascendência social e nas cortes medievais a classe política era, em geral, escolhida entre os mais próximos parentes da concubina oficial do rei. O seu primeiro filho nasceu em 1330, dois meses antes de João Manuel escrever ao rei de Portugal, e foi desde logo apelidado senhor de Aguiar, porque o seu pai lhe deu a povoação de Aguiar do Campo.
Estas notícias não passaram despercebidas em Portugal e a corte portuguesa estava perfeitamente a par da situação matrimonial que era vivida pela infanta, não deixando certas vozes de lamentar, mais em segredo, o seu matrimónio com o rei de Castela. A mancebia era admitida dentro de certos limites, que tinham de coexistir com a situação de genro e de marido e não podia de modo nenhum, aparecer aos olhos públicos como uma forma de desprezo pela mulher legítima. Só então ela, a mancebia, aparecia como escândalo e até às vezes, na boca do povo ou do pai, como vício que só a maturidade dos anos podia tornar menos verde. Foi evidentemente esse desgosto contido e dissimulado que levou Afonso de Portugal a encarar com simpatia a proposta de João Manuel.
Esperou e, em Fevereiro de 1331, num dia em que o frio azulava a própria carne, fez despachar de Lisboa a seguinte carta:
- «Dom Afonso por graça de Deus Rey de Portugal e do Algarve. Ao Duque de Penafiel, temeroso adiantado de Múrcia, cuja mercê e verdadeira amizade agradece e a ele se recomenda. Tendes vós inteira razão quando dizeis que ensina muito um erro, quando argue e castiga. Só não dói a alma a quem não envergonha a mentira. Acredito que dentro de Hespanha está Dona Constança como a mais linda pérola dentro duma concha. Portugal se a perdeu até aqui de vista, como o sol perde a pérola, não mais há-de deixar de fazer para a descobrir, até que o príncipe meu filho seja merecedor de tal princesa. Vencidas as dúvidas, concluído o concerto e afinadas as partes se há-de consumar e ajustar este nosso casamento».
Há plantas que em vez de crescerem em viço e em rebentos ainda mais definham com o tempo. Põem-se amarelas na estação em que deviam estar verdes e no tempo em que deviam dar os frutos dão uns botões secos e purulentos, de casca engelhada à nascença em volta do caroço. Com doze anos de idade e três de casa real, Branca tinha não só baldadas esperanças em muitas partes do corpo que não cresciam, como se multiplicava em achaques quanto mais os anos. Era o cabelo que se tomava cada vez mais esfarelado, tomando uma cor grisalha e seca, os olhos piscavam, os ombros que encolhiam e o juízo que não adejava. Guardavam-na em casa com Brites, que era ainda capaz de trocar com ela algumas palavras em castelhano, avivando-lhe na memória alguns dos lugares que lhe eram familiares e queridos. A única coisa que lhe interessava ainda era recordar os arredores de Madrid, onde tinha brincado com a mãe. Chorava nessas alturas e lavava as mãozitas finas e ossudas, um pouco engelhadas, aos olhos piscos ou à carita magra, onde estavam as lágrimas ralas. Usava sempre, quer fosse dia de Nossa Senhora da Conceição ou Domingo de Páscoa, a sua pelica negra, Que lhe dava um ar de coleóptero, e a sua touca de veludo azul que reforçava o seu todo de estofo.
O infante Pedro estava intimamente convencido de que não havia nunca de a desposar maritalmente, talvez porque se encontrava praticamente ausente do paço de Lisboa ou de qualquer outro paço onde pudesse encontrar Branca. Tinha crescido em dois anos o que certos moços crescem em quatro ou mesmo cinco. Começava a organizar as primeiras montarias na região, dispondo para isso de falcões amestrados, dispondo dos seus próprios homens e abdicando quer da presença de Lopo Fernandes, íntimo de seu pai, quer da de seu filho, Diogo Lopes Pacheco. Este tendia a impor um quadro de severidade e disciplina que intimamente desagradava ao infante e de que o fidalgo só no fim já da vida, depois das múltiplas vicissitudes que havia de passar na sua longa e atribulada existência, haveria de perder. Fidalgos como ele, geralmente bons cabos militares, serviam de freio aos infantes e estancavam neles, muitas vezes, o instinto exibicionista. Impunham-lhes um ritmo de existência palaciana, nada letrada, mas pautada por horários rígidos, em que se terçavam armas e se adestrava, na areia, o volteio. O infante tendeu sempre a sacudir essa alçada demasiado incómoda e furtava-se na sua pequenez à rigidez dos horários, acompanhando os moços da sua idade na vila de Atouguia. Era já requerido até às lágrimas e em especial as mulheres dos armadores, geralmente bem abotoadas nos seus jaquetões, gritavam com o cabelo armado em coifa, à sua passagem:
- - Avivamos, avivamos o infante Dom Pedro, ca filho é de el Rei Dom Afonso. Real, real, Dom Pedro infante de Portugal.
Cortesia de wikipedia
Era uma outra estroinice, essa que o infante conheceu logo desde a infância, nas ruas da Atouguia. Não se furtava a ela quem como ele teve os seus mimos tão minguados, primeiro pela guerra civil, que opôs o velho rei D. Dinis a seu filho D. Afonso, e depois por essa outra guerra, não menos dolorosa e injusta, entre D. Afonso, pai de Pedro, e Afonso Sanches, seu tio. Eram mimos a que ele não se furtava e carinhos, rudes e populares, que ele agradecia com a camaradagem e a destreza das palmas. As mulheres eram para ele seres rudes e pouco enfeitados, que se ocupavam em amanhar peixe ou em trabalhar nos pequenos pomares que rodeavam a vila. Tinham qualquer coisa de viragos e, apesar da extrema religiosidade que sempre mostravam, nada tinham de fracas e de débeis. Era um tipo de mulher viril, que tinha algo que parecia já resultar duma aculturação entre a mulher vinda do Norte, com os seus olhos cor de cinza ou de frio azul, e a mulher puríssima e sombria, de tipo árabe e fenício, que existia então em toda a costa portuguesa. Não atribuía o infante um sentido dúplice ou ambíguo à mulher e deixava-a estar entre os seus pequenos clarões caseiros e campestres, as suas fogueiras onde atiçava tições com que queimava, para a escaldar, a carne do animal morto. Tratava desapiedadamente do peixe para, consoante a estação, o fumar ou secar ao sol. Eram-lhe pois indistintos os afazeres matrimoniais de seu pai e só muito superficialmente ouvia falar deles». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990.
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