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Reatar de paixões, prenúncios de Soberania
«Rompia a noite na morada dos Maia. Bernardo convertera-se em arauto das suas histórias dos últimos anos, mas sobretudo dos acontecimentos da presente jornada, junto dos dois irmãos. Pela madrugada, ainda não parecia ter desfecho a narração da epopeia do Mendes, desde a sua entrada em Vallado até ao presente regresso a Portucale. A descrição do épico deixara os Maia particularmente excitados com o turbilhão de novas e, simultaneamente, exaustos, quando os primeiros raios de sol já penetravam no vasto salão da casa. Foi nessa altura que todos soçobraram. Só pela tarde, o colóquio entre Bernardo e os Maia seria reatado.
Tendo novamente o amplo salão como palco, Soeiro pôs Bernardo ao corrente dos funestos acontecimentos de Ferreira, que teriam como epílogo a morte de Hugo e dos seus sobrinhos. Elucidou-o, também, sobre as desventuras da estalagem de Mofatra e sobre o desaparecimento de Beatriz. Por fim, mencionaria um nome que deixou Bernardo tolo de ansiedade: Mafalda.
Segundo constava, a filha do abade estava prometida a um fidalgo portucalense de Rate, originário, todavia, de uma família galega. Soeiro afirmaria, comentando o facto, que o interesse de Mendes Pais nessa relação, privilegiava a intenção de recuperar o fundamento que, definitivamente, lhe outorgasse a posse das terras de Ferreira e, depois, dos territórios de Portucale. Era esse, segundo o Maia, o objectivo particular do abade, suspeito de ter sido o mentor do ataque à mansão dos Mendes e da morte dos familiares de Bernardo. Este, no final da exposição, revelava uma inquietação notória, adivinhando estar, uma vez mais, sob a ameaça dos pérfidos propósitos do vil abade.
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Apesar de perturbado, Bernardo aproveitou aquela situação para esclarecer, junto dos Maia, a razão particular do seu regresso a Portucale. Assim que pormenorizou o facto de Afonso VI pretender nomear um governador para Portucale, a satisfação dos dois irmãos sobreveio, ávidos de decisão sobre o problema de administração no território. O regresso de Bemardo, tal como um Messias cuja manifestação é continuamente adiada, voltava a encher de júbilo os anseios dos Maia e de muitos barões e infanções portucalenses que porfiavam há muito alcançar a autonomia para o território entre Douro e Minho.
Por tal, no dia seguinte, seria a caminho das diversas casas senhoriais que partiriam emissários, no intuito de convocarem os representantes dos notáveis para uma reunião magna, a ter lugar daí a uma semana, tendo Soeiro e Gonçalo por anfitriões e Bernardo como representante do monarca de Leão e Castela. Entretanto, o hiato daria tempo ao monge para recuperar da terrível jornada e ainda para se deslocar a Ferreira.
Contudo, nesse dia, Bernardo ainda seria surpreendido pela apresentação das recatadas mulheres dos seus companheiros de infância, Gotronde, mulher de Soeiro, e Leonor, esposa de Gonçalo, cuja existência o monge estava longe de imaginar. Muito havia mudado.
Mas era Ferreira que inspirava o destino próximo do monge. Foi para aí que se dirigiu, quando a manhã ainda não deixara o sol agigantar-se no céu. Talvez por isso, uma displicência do seu auspicioso guia geográfico, Bernardo parecia algo desorientado, cumprindo o trajecto para casa do tio, amargurado e quase indiferente, que nem a renovada e fogosa pressa de ‘Lucus’, já recuperado dos ferimentos, aliviou.
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Com efeito, não tardou a penetrar num cenário de completa desolação. A casa jazia em ruínas, sem vivalma em redor, e os escombros calcinados faziam adivinhar o horror do acontecimento. Apenas a capela havia sido poupada. Foi aí que Bernardo reconheceu a campa de seu pai, Nuno, agora acompanhada pelas dos seus irmãos. Estas últimas, bem como a do tio, ali perto, tinham sido obra dos Maia. Perante o cenário que o afligia, Bernardo orou, compadecido, e penitenciou-se por não ter estado presente naquela funesta ocasião.
Contudo, prenhe de recordações contraditórias da sua vida de luxúria, das intervenções de Hugo e do momento que o levou ao exílio em Vallado, entrecortadas por uma infinidade de sentimentos confusos, o pensamento de Bernardo explodiu de dúvidas, mortificando-se, até que, exausto, o monge decidiu abandonar o lugar, afastando-se a galope.
Escassas léguas bastaram para diluir o turbilhão de apreensões que o mortificavam, mas que, lentamente, iam sendo substituídas por uma só inquietação: rever Mafalda! De tal forma que, a meio do percurso de regresso à Maia, Bernardo deteve a montada. Algo indefinido, porém estranhamente perceptível, persuadia-o a alterar o trajecto, levando-o a recuar no tempo, até aos seus passeios eremitas pelos penedos do Alvão ou pelas fragas do Marão. No entanto, a solicitação parecia encaminhá-lo para sul, para o Douro. Seria novamente a natureza a exigir o regresso dele aos seus tempos de moço ou outro desígnio insondável?
Para se sossegar, escolheu a hipótese mais simples. Aliás, a reminiscência da sua juventude era muito forte, ao ponto de lhe tolher alternativas que não passassem por trepar a uma qualquer falésia, de onde o Douro pudesse ser facilmente cortejado.
Preparado para reviver a época em que era companheiro da natureza, Bernardo galgou os últimos granitos que o separavam da paisagem do rio Douro não sem antes notar que, ao longe, se avistava outro cavaleiro, que, rapidamente, desapareceu, porventura com um destino diferente.
Mas a torrente de água, em baixo, lenta, porém portentosa, a acariciar as margens ainda pintadas de verde, revelava-se mais insinuante, ao perder-se entre as curvas do rio. Foi para lá que Bernardo apurou o olhar, buscando pormenores, percorrendo com a vista cada degrau da encosta. Até que os seus olhos vislumbraram um grupo de indivíduos, camuflados entre a parca vegetação de um outeiro próximo. Ocultavam-se, parecendo montar uma emboscada a uma comitiva pouco numerosa que subia a elevação. Para o monge, que pretendia partilhar a serenidade das suas memórias durienses, o intuito gorava-se, perante a expectativa de um confronto. Indolente com a paisagem, Bernardo quis ignorar a iminência do ataque e das respectivas consequências, mas, do céu, a planar com uma tranquilidade pícara, a silhueta de uma águia, evoluindo em voos concêntricos sobre um penhasco sobranceiro ao rio, arrebatou-o da dormência para a suposição: estaria a ave de rapina, outra vez, a alertá-lo e a instigá-lo a agir? Nada como devassar o destino, intervindo, concluiu sem reservas». In Carlos Cordeiro, O Livro de Cale, Publicações Europa-América 2010, edição nº 103583/9344, A Fábrica das Letras, ISBN 978-972-1-06140-8.
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