Cortesia de dipity e aresdaminhagraca
«Os estudos históricos sobre o mundo rural no espaço hoje português têm já uma longuíssima tradição, desde as propostas pioneiras de Alberto Sampaio. Contudo, nem sempre se tem assistido à desejável colaboração interdisciplinar que tais estudos requerem. Por definição, as sociedades rurais são maioritariamente agrafas, sobretudo se comparadas com as comunidades urbanas e, paradoxalmente, a investigação tem explorado mais a dimensão documental do que a dos vestígios materiais. É certo que a delimitação das propriedades, informação sobre usos agrícolas e mesmo dados sobre o povoamento se podem coligir a partir de múltiplos diplomas legais ou outros textos, e a historiografia portuguesa recente tem inúmeros exemplos de investigações bem sucedidas, nos domínios da reconstituição das antigas paisagens agrárias baseadas neste tipo de fontes. Tem faltado, contudo, diria, a paralela e convergente investigação sobre os modos como se materializou a ocupação e utilização dos campos, domínio onde a investigação arqueológica tem evidentemente uma palavra a dizer.
As abordagens centradas na documentação escrita ou, no extremo oposto (passe a expressão), a abordagem etnográfica às comunidades que se mantêm instaladas nos territórios, para lá da sua evidente utilidade e das suas importantes aquisições, lidam, por norma, com processos já concluídos e estabilizados. Pelo recurso às fontes documentais, estudam-se paisagens rurais estruturadas e em plena laboração; independentemente de poderem registar também algumas oscilações de conjuntura(s), ou rastrear algumas transformações de maior amplitude, como as que marcam o crescente domínio de uma determinada produção sobre outras num dado âmbito geográfico; permitem, ainda, a indagação do impacte da introdução de novas culturas, particularmente as resultantes da descoberta do Novo Mundo.
Cortesia de fabiopestanaramos
As abordagens etnográficas, lidando também com comunidades estabilizadas, pela natureza dos seus métodos, tendem a minimizar a variável diacrónica, transmitindo a imagem de sociedades vivendo «fora do tempo», repetindo atavicamente gestos e rotinas sempre iguais. O claro contraste entre este mundo rural aparentemente imóvel e as dinâmicas urbanas de rápida transformação criam, não poucas vezes, a ilusão nos citadinos olhares de muitos dos investigadores a noção de que mergulham no tempo, assistindo a quadros vivos de um passado remoto ainda teimosamente vivo, quando não mesmo à acabada expressão da «genuína alma nacional». Assim foi desde os primórdios da etnografia na Europa e assim é ainda, com demasiada frequência, adaptando a célebre citação de Lévi-Strauss sobre a «Antropologia como o remorso dos europeus», apetece dizer que algumas destas abordagens se parecem muito com «o remorso dos citadinos». E, sublinhe-se, esta ilusão de «viagem a um passado ainda presente» transcende fronteiras disciplinares e contamina fortemente o próprio discurso arqueológico. Lembre-se, somente, um exemplo respigado de um interessantíssimo livro de introdução à Arqueologia, saído da pena de um reputado e consagrado arqueólogo britânico, especializado no período medieval, que consagra um capítulo a explicar aos que se iniciam nas práticas arqueológicas as vantagens de estanciar nos meios rurais da Europa do Sul ou Norte de África, onde ainda se podem observar paisagens, economias, modos de subsistência, tecnologias e quotidianos que remontam à Antiguidade ou a épocas medievais. Pode acrescentar-se que, quanto mais se transformar e mecanizar a agricultura e quanto mais a comunidade estudantil se afastar de origens rurais, mais necessário se tornará explicar a funcionalidade de construções e artefactos, que nos parecerão cada vez menos familiares, se não mesmo absolutamente exóticos e de obscura função.
Cortesia de pedagogiavida
O mundo rural, feito de atavismos, de gestos repetitivos e tão profundamente ligado a práticas artesanais absolutamente estranhas à mecanização actual transmite de facto a noção de um mundo atemporal, imóvel que sempre assim esteve quase desde a Antiguidade. Acresce que a tecnologia agrária conservou, literalmente até hoje, traços que remontam a distantes Eras. As maiores transformações na morfologia das alfaias agrícolas ocorreram com a generalização do ferro no fabrico dos instrumentos do quotidiano, que permaneceram, quase inalterados, em toda a época da mecanização agrária. Praticamente desde o século V a.C. até aos tempos modernos podemos encontrar artefactos de análoga forma e função não muito diferente, afinal, do conhecido em outras regiões da Europa. A extensa lista de artefactos apresentada por Pla Ballester poderia ser retirada dos escaparates de um qualquer museu etnográfico actual; pelas mesmas razões, adquiriu toda a pertinência a utilização da célebre iluminura do “Apocalipse” do mosteiro de Lorvão para documentar a tecnologia agrária identificada na ”uilla romana de S. Cucufate, Vidigueira”, uma vez que praticamente todos os artefactos ali representados, desde a foice de segar cereais, às outras, de vindima e poda de pomares, sem esquecer a prensa de vinho, se encontraram no decurso das escavações da exploração de época romana.
Estes mesmos atavismos e persistências tecnológicas conduzem, frequentemente, a generalizações apressadas, fundadas em mero senso comum, que devem ser combatidas e rectificadas. A mais frequente é essa convicção de que existe uma qualquer continuidade que faz do «monte», alentejano, particularmente o do Alto Alentejo das grandes herdades, a versão moderna da ”uilla” romana; isto é, da exploração agrária de cariz senhorial, autónoma e auto-suficiente. Se é certo que podemos encontrar algumas afinidades entre uns e outras, designadamente no carácter «senhorial», da posse da terra e na organização complexa e multifuncional dos espaços construídos, não é menos certo que uma generalização deste teor faz, de uma penada, tábua rasa de séculos de dinâmica história das áreas rurais desta região do interior. Esquece objectivamente todos os fenómenos de transformação e mudança ocorridos no período romano, a sua adaptação a novos quadros políticos, jurídicos e sociais; esquece a presença islâmica, passa ao lado do processo da chamada «reconquista cristão» e a acção das ordens religiosas na construção de uma nova paisagem agrária; ignora, finalmente, todos os processos mais recentes, designadamente o das ‘desamortizações’ liberais». In Carlos Fabião, Estudar o Mundo Rural na Antiguidade, A Cidade, Edições Colibri, nº 13-14, 1999-2000.
Cortesia de A Cidade/JDACT