Cortesia de lereverwordpress
«A historiografia ‘oficial’ difundiu apenas uma dessas correntes narrativas, sob formas mais ou menos exaltadas, mas sempre altamente elogiosas, iluminando ora a faceta da santidade e de instrumento da providência divina do nosso primeiro rei ora a faceta do guerreiro ousado e indomável ou do prudente estratego, ora a sua capacidade de hábil político ou de genial herói. Basta, para isso, percorrer os textos de Duarte Nunes de Leão, de Fr. Bernardo de Brito, de Fr. António Brandão, de Pinheiro Chagas, de Damião de Peres, etc, e examinar os compêndios de História do ensino secundário desde 1895 até aos anos 60, ou as obras de divulgação, para verificar, como Sérgio Matos, a vigorosa persistência de uma «narrativa canónica» baseada no modelo de Herculano e quase invariavelmente transmitida como expressão do imaginário nacional.
O Instrumento de Deus
A tradição do fundador movido pela mão de Deus nasceu cedo. Encontra-se pela primeira vez sob uma forma já elaborada e ampla nos “Annales domi Alfonsi portugallensium regis”, que um cónego regrante de Santa Cruz de Coimbra redigiu pelos anos de 1185-1195, ampliando um texto analítico precedente, mais seco, perdido, mas de que se conhecem em resumo as notícias anteriores a 1169, isto é aquele conjunto a que Pierre David chamou “Annales Portucalenes veteres”, cujo testemunho mais importante é a chamada “Crónica Gothorum”.
Ao mostrar que ele não era apenas um guerreiro vitorioso, mas um verdadeiro instrumento de Deus, o autor apelava para a confiança na protecção sobrenatural e para a necessidade de continuar a obra por ele encetada. Por isso acumula uma impressionante quantidade de epítetos com que define as dimensões heróicas do nosso primeiro rei:
- ‘gigante’, ‘leão rugidor’, ‘varão ínclito’, valoroso nas armas’, erudito na palavra’, prudentíssimo nas obras’, ‘de engenho perspicaz’, ‘belo de cor+po’, ‘desejável ao olhar’, profundamente fiel à religião católica’ “Totus in fide Catholicus”, ‘benévolo e devoto para com os ministros do culto’.
Todas estas qualidades tornaram-no merecedor de ser escolhido por Deus para dilatar as fronteiras cristãs e de ser constantemente ajudado pela clemência divina para levar a bom termo as suas empresas.
Cortesia de araduca
Na época em que o texto foi escrito era indispensável restaurar a confiança dos portugueses no filho do rei derrotado de Badajoz (1169), daquele que desde então tinha de andar numa carreta por não poder mais montar a cavalo à frente dos seus guerreiros. Desde 1184 que se esperava com terror a grande ameaça almóade, que comprometia o progresso das armas cristãs nas décadas anteriores. Repetidamente, em 1184, 1190 e 1191, tinham vindo até Santarém, Torres Novas, Tomar e Almada dois emires de Marrocos, em pessoa, Abu Yaqub Yusuf I e Abu Yusuf Yaqub al-Mansur. Espalharam a desolação e a morte nas campinas ribatejanas e mesmo na margem norte do Tejo, em muitos lugares da Estremadura, enquanto o grosso das tropas cercava as principais cidades portuguesas na linha do Tejo.
Tinham-se apoderado de todas as grandes praças portuguesas para sul do mesmo rio, excepto Évora, reduzindo a nada o temerário esforço de Sancho I, que, enquanto príncipe, havia chegado com os seus homens às portas de Sevilha e que tinha conseguido conquistar a longínqua e bem defendida cidade de Silves. Era, pois, necessário renovar a fé dos cristãos, persuadi-los de que Deus não abandona assim o seu povo e que era agora a ocasião de reunir forças para resistir a eventuais novos ataques e recuperar as terras perdidas. Tinha sido o próprio Deus que escolhera o primeiro rei de Portugal e que dirigira os seus passos. Os seus vassalos deviam, pois, confiar na chefia do seu sucessor, mesmo que os tempos fossem duros. O filho do rei que havia morrido há pouco não podia ser abandonado por Deus.
Só ele podia continuar a obra empreendida por seu pai. A demonstração acerca da sua protecção divina sobre Afonso Henriques, feita através da memória das suas vitórias sobre os inimigos da cristandade, constituía, sem dúvida, um encorajamento para o povo de Coimbra, que, durante a segunda invasão, não esteve muito longe das cenas de carnificina que haviam vitimado, segundo parece, a comunidade de Alcobaça e que, por isso, se preparou para resistir a um eventual cerco.
Cortesia de xicoinforma
O povo tinha de confiar no rei Sancho, filho de Afonso Henriques. Pode-se imaginar que o texto incompleto destes “Annales”, interrompidos abruptamente antes de terminarem a notícia da invasão de Abu Yaqub, quando iam, decerto, relatar o seu falecimento durante a viagem de regresso a Sevilha, depois de mortalmente ferido às portas de Santarém, deveriam, talvez, continuar com a notícia da conquista de Silves e com a das duas invasões de 1190 e de 1191. Talvez tivesse sido interrompido, justamente em virtude do terror incutido pela primeira destas duas expedições.
De qualquer maneira, não admira o teor do texto e o seu intuito laudatório. Os acontecimentos recentes justificam-no perfeitamente. Mas é preciso não esquecer também que Santa Cruz de Coimbra era o mosteiro fundado por Afonso Henriques e como o santuário a quem ele confiava a função simbólica de garantir, aos olhos dos seus súbditos, o sancionamento divino para a sua autoridade. Outros escritos aproximadamente contemporâneos, e também redigidos em Santa Cruz de Coimbra, mostram igualmente uma especial relação com o rei, embora não acentuem da mesma maneira o retrato apologético aqui traçado. Admitindo que estes “Annales” tinham sido começados a escrever pouco depois das exéquias de Afonso Henriques, pode-se pensar também que se destinassem a perpetuar a memória das suas acções mais notáveis, justamente para mostrar que apesar da sua morte a monarquia continuava, que a linha se mantinha, e assim exprimir, atribuindo um carácter sagrado à obra de Afonso Henriques, a fé na vitória da vida sobre a morte.
O reino por ele fundado continuava, apesar da mudança do rei. Representava, evidentemente, a visão de um clérigo dotado já de uma certa capacidade de abstracção, embora ele exprimisse as suas ideias pela simples narrativa de factos por ele considerados extraordinários e sem explicar as suas concepções acerca da relação entre o poder político e o poder sagrado e acerca da continuidade de ambos (33)». In José Mattoso, As Três Faces de Afonso Henriques, Publicação Penélope, Fazer e Desfazer a História, 1992, Dossier, Edições Cosmos, Lisboa.
Cortesia de Edições Cosmos/JDACT