Cortesia de oficinadolivro
«No mesmo dia em que Briolanja Mendes foi a sepultar, na campa rasa de um montezinho situado a pouco menos de meia légua das terras pertencentes à casa do conde de Barcelos, Leonor Teles de Menezes cumpriu uma jura antiga: abandonou o marido e o filho, virou costas a Pombeiro e partiu para Lisboa. A decisão, tomada tempo antes de a velha Briolanja se extinguir, deixou D. João Afonso Telo, conde de Barcelos, louco de fúria não apenas por ver na aventura da jovem sobrinha uma traição infame ao marido e um acto de desamor pelo filho, mas também por considerar a fuga uma cruel avania contra quem, como ele, fora o único a substituir-se no afecto dos pais, Martim Afonso Telo de Menezes, assassinado em Toledo pelo cruel D. Pedro de Castela, e D. Aldonça de Vasconcelos, falecida prematuramente em consequência do rescaldo da Grande Peste que varreu um terço da população europeia.
Logo no primeiro dia de orfandade da pequena Leonor, com apenas cinco anos, João Afonso Telo propusera-se conceder toda a protecção à criança, e até distingui-la dos irmãos, João Afonso Teles, Gonçalo Teles e Maria Teles, igualmente seus sobrinhos, nos benefícios resultantes da cobrança de rendas e distribuição de terras. A Leonor coube sempre o melhor quinhão. O melhor e o pior, também, se se considerar a circunstância de o tio lhe ter destinado o fidalgo que ela menos queria para casar. É verdade que tinha feito já dezoito anos, idade mais do que razoável para celebrar matrimónio, ter filhos e dar continuidade à linhagem familiar a que pertencia. Mas o facto de não haver na região da Beira um cavaleiro à altura dos seus sonhos e das exigências que ela impunha a outrem, e a si mesma, eliminava à partida a hipótese de um casamento admirável.
Leonor Teles sempre quis um homem encantador, um macho cujo perfil correspondesse à sua extraordinária beleza.
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Só que na Beira a possibilidade de escolha do homem perfeito, que ela via ou inventava em desvairados sonhos, era difícil, se não mesmo improvável. Por isso, e porque jamais seria capaz de contrariar a vontade do tio, quanto mais não fosse por respeito à idade e ao facto de ele ter sido armado cavaleiro pelo rei D. Pedro de Portugal numa cerimónia pública em que foram gastas avultadas somas em círios e tochas, D. Leonor começou por aceitar, no silêncio da renúncia, a oferta para aconchego matrimonial de um fidalgo de muitos bens, filho de Martim Lourenço da Cunha, primeiro senhor de Pombeiro, e de D. Maria Anes de Briteiros.
João Lourenço da Cunha, assim se chamava o futuro marido de Leonor Teles, era um homem pouco mais velho do que ela, de figura medíocre, estatura abaixo da média, volumoso de rosto e de tronco, ambos assimétricos, de cabelo negro, quase sempre desalinhado, e com a pele muito morena. Mas pior que o aspecto físico do fidalgo, que até às prostitutas beirãs e transmontanas chegava a suscitar nojo e desconforto, eram a estupidez e a cobardia que ela mais detestava nele.
Certo dia, já depois de realizados os competentes esponsais, acordada a soma do dote e lavrada a escritura do acontecimento, a jovem pensou falar ao tio para lhe confessar o seu total desinteresse no brinde que ele lhe destinara e, consequentemente, abdicar de todos os benefícios resultantes do consórcio imposto. E chegou mesmo a decorar duas ou três frases fortes, comoventes, com base na eterna ideia de que o amor prevalece sobre todas as coisas materiais da vida, pelo que, em homenagem a esse princípio que habitava as regiões mais fundas de si mesma, melhor seria desfazer o negócio matrimonial com João Lourenço da Cunha, senhor do morgado de Pombeiro, e esperar por outra oportunidade. Com um discurso apropriado às circunstâncias, pensava ela, talvez o conde se deixasse convencer e, resultado disso, revogasse a escolha do homem que haveria de lhe servir para marido. Mas João Afonso Telo não era pessoa talhada para mudar de ideias, muito menos para ceder a pressões de uma mulher, menos ainda para se amoldar a conceitos tão modernos quanto os do amor e da beleza, sobre os quais as açafatas da sua pequena corte discorriam regularmente. Só entre elas e em segredo, diga-se.
Para João Afonso Telo, a palavra era, acima de tudo, um voto terminante, uma espécie de lei irrevogável, a insuspeita garantia de que nenhuma forma de arrependimento poderia alterar o que quer que fosse. O que se dissesse e se prometesse estava dito e prometido. Significava isto que, uma vez dada a sua palavra, nada faria o conde voltar atrás. E Leonor Teles sabia-o melhor que ninguém.
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Mesmo assim, numa tarde de muito frio, depois de ter passado mais de duas horas a rezar para que a falecida mãe intercedesse no Céu por ela e a ajudasse a descobrir na terra o caminho da redenção e da procura, encontrou-se às escondidas, na câmara inferior do solar, com Briolanja Mendes, que fora na sua infância uma dedicada ama e era agora, na idade adulta, a única confidente e excepcional conselheira. Queria saber o que a velha criada pensava do assunto, da conveniência ou da inconveniência de uma conversa com o senhor conde acerca da proposta de renúncia ao fidalgo prometido.
Logo que as duas mulheres entraram na sala, Leonor Teles, antes mesmo de se sentar num dos dois únicos bancos de pinho que compunham o parco mobiliário daquele desconfortável compartimento, apoiou as mãos sobre os ombros da ama e, num tom de voz estremecido, perguntou:
- - Que hei-de fazer eu à vida, Briolanja Mendes? Tu, minha devotada amiga, tu que acreditas nos sortilégios e sabes que os presságios se cumprem sempre, diz-me o que deverei fazer? Sabes que arrenego o homem com quem vou casar e, Deus me perdoe a blasfémia, também deves saber que por arrenegá-lo tanto jamais saberia amar o filho que porventura dele viesse a ter...
- - Senhora...
- - Não, Briolanja, ouve primeiro e fala depois.
Com a mão direita e a ajuda da perna esquerda, Leonor Teles arrastou um banco pelo chão e colocou-o a pequena distância do outro, daquele que haveria de ocupar.
- - Agora senta-te aqui e escuta - ordenou, triste, emocionada, com os olhos vermelhos de muito choro.
- -Dizia--te eu que abomino João Lourenço não tanto por me ter sido imposto pelo senhor conde, meu tio, nem sequer pela sua desagradável feição e o grosseiro porte, mas principalmente por ver nesse reles fidalgo a incapacidade de recensear dois ou três actos de valentia que tanto nos seduzem, a nós, mulheres.
Disseram-me aqui mesmo, nesta câmara, alguém sentado no lugar onde estás, e que bem o conhece, que João Lourenço é um homem habituado unicamente ao consolo das amantes e ao regalo de outras mulheres de estimação duvidosa. Assim sendo, como posso eu partilhar a cama com um demónio desses? Diz-me, Briolanja! Como posso eu partilhar o meu corpo com um fidalgo rico de bens, é certo, mas pobre de sentimentos? Ou me engano muito ou ele espera de mim, apenas e tão-só, uma esposa dócil, a esposa fértil que lhe multiplique a família, lhe perpetue o nome e a descendência». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
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