Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Mas mesmo ao final de seu
grande furto Uccello não estava contente, porque o maior tesouro de todos lhe
escapara. Era tudo o que podia fazer para esconder a sua agitação. O acaso
havia colocado uma grande oportunidade ao seu alcance e ele não podia deixar
que escapasse. Mas onde estava a coisa? Ele tinha olhado cada centímetro dos
aposentos do capitão e ela continuava escondida. Maldição! Será que o tesouro
estava sob encantamento? Teria sido feito invisível para assim escapar dele? Depois
da breve parada do Scáthach em Diu, o navio partiu depressa para Surat, de cuja
cidade (recentemente alvo de uma visita punitiva do próprio imperador Akbar)
lorde Hauksbank planeava iniciar a sua viagem por terra à corte Mogol. E na
noite em que chegaram a Surat (que estava em ruínas, ainda fumegante da ira do
imperador), quando Benza-Deus Hawkins cantava com toda alma e a tripulação
estava bêbada de rum, celebrando o fim da longa viagem por mar, o buscador
debaixo do convés por fim encontrou o que procurava: o oitavo painel, um a mais
que o número mágico, sete, um a mais do que qualquer ladrão podia esperar. Por
trás dessa porta derradeira estava a coisa que ele procurava. Então, depois de
um último acto, ele se juntou aos festejadores no convés e cantou e bebeu com
mais ânimo que qualquer homem a bordo. Porque possuía o segredo de permanecer
acordado quando os olhos de nenhum outro homem conseguiam ficar abertos, chegou
o momento, nas primeiras horas da manhã, em que pode deslizar para terra num
dos escaleres do navio e desaparecer, como um fantasma, Índia adentro. Muito antes
de Benza-Deus Hawkins dar o alarme, ao descobrir lorde Hauksbank desse Nome, de
lábios azulados no seu último catre de navio, liberto para sempre dos tormentos
da sua voraz finocchiona, Uccello di Firenze havia desaparecido, deixando para
trás apenas esse nome como a pele abandonada de uma cobra. Junto ao peito do
viajante sem nome estava o tesouro dos tesouros, a carta de próprio punho de
Elizabeth Tudor da Inglaterra para o Imperador da Índia, que seria o seu abre-te-sésamo,
o seu passaporte para o mundo da corte mughal. Ele era o embaixador da
Inglaterra agora.
Ao
amanhecer, os assombrosos palácios de arenito
Ao amanhecer, os assombrosos palácios
de arenito da nova cidade da vitória de Akbar, o Grande, pareciam feitos de
fumaça vermelha. A maior parte das cidades começa dando a impressão de ser
eternas quase desde que nascem, mas Sikri iria sempre parecer uma miragem.
Quando o sol chegava ao zénite, a grande clava do calor diurno se abatia sobre
as pedras das ruas, ensurdecendo os ouvidos humanos para qualquer som, fazendo
o ar tremer como um antílope assustado, enfraquecendo a fronteira entre a
sanidade e o delírio, entre o inventado e o real. Até mesmo o imperador
sucumbia à fantasia. Rainhas flutuavam dentro de seus palácios como fantasmas,
sultanas rajput e turcas brincando de pegador. Uma dessas personagens reais não
existia de verdade. Era uma esposa imaginária, sonhada por Akbar do jeito que crianças
solitárias sonham com amigos imaginários, e apesar da presença de muitas consortes
vivas, embora flutuantes, o imperador acreditava que as esposas reais é que
eram fantasmas e a amada não existente é que era real. Ele lhe deu um nome,
Jodha, e nenhum homem ousava contradizer-lhe. Dentro da privacidade dos
aposentos das mulheres, dentro dos corredores sedosos do seu palácio, a influência
e o poder dela cresciam. Tansen escreveu canções para ela e no estúdio-escritório
sua beleza era celebrada em pinturas e versos. O próprio mestre Abdus Samad, o
persa, a retratou, pintando-a de memória de um sonho sem nunca ter olhado o seu
rosto, e quando o imperador viu o trabalho bateu as mãos diante da beleza que
brilhava na página.
Você captou tudo dela, a vida,
gritou, e Abdus Samad relaxou e parou de achar que a sua cabeça estava um tanto
frouxa no pescoço; e depois que essa obra visionária do mestre do atelier do
imperador foi exposta, toda a corte sabia que Jodha era real, e os maiores
cortesãos, os Navratna, ou Nove Estrelas, todos admitiram não apenas a sua
existência, mas também a sua beleza, a sua sabedoria, a graça dos seus movimentos
e a maciez de sua voz. Akbar e Jodhabai! Ah, ah! A história de amor daquela
era. A cidade por fim foi terminada, a tempo do aniversário de quarenta anos do
imperador». In Salman Rushdie, A Feiticeira de Florença, Publicações dom Quixote,
2008, ISBN 978-972-203-692-4.
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