jdact
Soure. Julho de 1132
«(…) É tempo de morrer em paz. Vou
para casa. Os outros não conheciam a sua terra, mas o Velho anunciou que iria para
o Norte, e Ramiro aceitou a decisão dele, pois não se devia contrariar um homem
daquela idade. Ele tinha o direito de falecer onde desejasse, e o bastardo de Paio
Soares decidiu que o acompanharia até Coimbra, onde ia reportar a Afonso
Henriques a macabra descoberta que tinham feito nas margens do Nabão. Na madrugada
seguinte, em Soure, o Velho despediu-se, emocionado, dos seus companheiros templários
e Ramiro mandou-o subir para o seu cavalo. Estavam curtos de animais, iriam os
dois juntos, como faziam os pobres cavaleiros de Cristo na Terra Santa.
Enciumado por os ver tão próximos,
o Rato atirou-lhes um adeus e avisou Ramiro de que tivesse cuidado no regresso,
temendo uma emboscada sarracena. Porém, o bastardo de Paio Soares nem reagiu. No
calor das suas clandestinas ternuras, Ramiro garantia sempre ao Rato que, depois
das surras que o pai lhe dera em criança, nunca mais tivera medo de nada nem de
ninguém.
Coimbra. Julho de 1132
Ramiro ajudou o Velho a desmontar,
no pátio em frente à Sé, sentindo que em seis anos de convívio se forjara entre
eles uma lealdade verdadeira. Agora, os seus caminhos divergiam, embora o Velho
parecesse já arrependido da decisão que tomara. Em voz pesarosa, confessou que ia
sentir saudades da camaradagem da Ordem do Templo. Ramiro confortou-o e, depois
de um abraço final, subiu pelas escadas de granito da igreja de Coimbra. Em passo
lento, o Velho afastou-se, curvado, arrastando os pés, mas uns metros à frente já
sorria, embora se tenha mantido encolhido, não fosse alguém vê-lo. O seu talento
para a mistificação continuava intacto, enganara bem os colegas. Aproveitando um
momento de distracção destes, simulara uma queda desamparada, fingira-se abalado
e dorido e apresentara a decisão de partida como inevitável. Por respeito, os companheiros
aceitaram-na, crédulos como sempre. Ninguém desconfiara dele e, ao longo de seis
anos, fizera por isso.
Alistara-se naquela Ordem a mando
de Fernão Peres Trava, que era o seu senhor e lhe dera instruções para se manter
vigilante em Soure. O Trava queria um homem da sua confiança integrado secretamente
naquela congregação, para acompanhar a busca da relíquia sagrada trazida pelo conde
Henrique da Terra Santa. Várias vezes por ano, os dois trocavam curtas mensagens,
usando como cúmplice um ferreiro galego, à casa de quem o Velho se começou a dirigir.
Porém, mal virou para a rua lateral à Sé, chocou com a princesa Zaida, que saía
da biblioteca, muito apressada, e quase deu um trambolhão à sua frente. Desculpai-me,
murmurou o Velho, atrapalhado.
A princesa
endireitou-se, ajeitando as roupas e escondendo algo no regaço. Parecia claramente
comprometida, como se estivesse a fazer o que não devia. A pergunta que lhe dirigiu
foi mais uma tentativa de dissipar a desconfiança dele do que uma verdadeira preocupação
com a sua saúde: estais bem? Pareceis doente... O Velho limitou-se a encolher os
ombros: a velhice não tem cura». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A
Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.
Cortesia
de CdasLetras/LeYa/JDACT