Cortesia
de wikipedia e jdact
Norte de África
«(…) Mirina e Lilli seguiram o
rio por dez dias. Tinham água de sobra para beber, mas a terra que as cercava
de ambos os lados era estéril. Sempre que Mirina encontrava alguma planta que
lhe parecesse minimamente comestível, mascava algumas folhas ou pedaços da raiz
e esperava um pouco para observar os seus possíveis efeitos. Só então a
oferecia a Lilli. E toda a vez que o regato preguiçoso empoçava em algum ponto,
ela o vasculhava na tentativa de pegar um peixe solitário. Nos dias mais
quentes, um animal ou dois podiam descer até ao rio em busca de água e, graças
ao seu arco e a algumas flechas restantes, Mirina em geral conseguia obter essa
carne desconhecida para o jantar. Esses eram os momentos bons. Elas ficavam
acordadas até tarde, comendo até se fartarem, e inevitavelmente se pegavam
relembrando a vida de antes. Como as mazelas diárias de seu povoado agora
pareciam triviais. E como ganhavam valor todos os pequenos prazeres. O
aconchego da família, as preocupações e mexericos, tudo se mesclava num sonho
radiante e feliz, um mundo de inocência impossível que agora existia apenas em
palavras.
Como Mirina e Lilli tinham
nascido no povoado de Tamash, as duas sempre haviam pensado nele como o seu
lar. E quando as outras crianças zombavam delas por serem estrangeiras, com
hábitos estrangeiros, a mãe apenas descartava os comentários, e garantia às
filhas que os outros não sabiam o que estavam dizendo. Eles acham que uma
mulher ter filhos com homens diferentes é uma coisa má, dizia ela, revirando os
olhos. Mal sabem que o pai deles mesmos talvez não seja quem acham que é. Além
da acusação de promiscuidade, havia também a questão das misteriosas
habilidades de sua mãe com ervas e raízes. Contudo, embora as mulheres da
aldeia pudessem passar os dias na bisbilhotice sobre o seu comportamento pecaminoso,
bastava alguma doença acometê-las para que aparecessem na porta da sua casa
implorando remédio.
Mais de uma vez, os anciãos, com
belas túnicas e bastões esculpidos, tinham visitado o seu casebre para pedir a
Talla que parasse de praticar as suas artes estrangeiras. Mas ela só fizera
balançar a cabeça, pois sabia que as mulheres do povoado jamais os deixariam
expulsá-la. Numa ocasião específica, Mirina lembrava-se de ter ouvido a mãe
provocar o chefe da aldeia dizendo: você acha que eu joguei um feitiço no seu
passarinho caolho, Nholo? Quem sabe se você não passasse o dia inteiro sentado
em cima dele, falando bobagem, ele conseguisse voar de novo. Agora até esses
instantes infelizes pareciam maravilhosos ao serem recordados. Implicâncias
eram esquecidas; dívidas, perdoadas. Mirina se assombrou ao constatar como a
morte levava embora todos os detalhes incómodos da vida e tornava puro e
acolhedor um povoado inteiro de pessoas mesquinhas. Conforme os dias da monótona
viagem iam passando, as irmãs muitas vezes retornavam às mesmas lembranças,
como se o prazer aumentasse com a repetição.
Ainda
consigo ver, dizia Lilli, disfarçando uma risadinha. Mãe tentando pegar o velho
galo... Ah, como ela ficou brava! E todos aqueles meninos perdidamente
apaixonados por você, mas com medo até de sorrir na sua frente... Mirina nunca
repreendia a irmã por falar assim. Apenas ria também e a deixava vagar por esse
passado imaginário pelo máximo de tempo possível. Sabia que o presente não
tardaria a se impôr. No décimo primeiro dia, o rio se alargou formando um
delta, e então, por fim, Mirina começou a ver indícios de outros seres humanos.
Canais rasos escavados para irrigação deixavam a paisagem parecida com teias de
aranha, mas mesmo assim nenhuma gota d’água chegava até aos campos. O chão ali
era tão seco quanto na sua aldeia e não havia um agricultor sequer à vista. O
que foi?, perguntou Lilli, incomodada pelo longo silêncio da irmã. Nada. Mirina
tentou parecer alegre, mas a verdade era que estava morta de preocupação. Para
onde quer que olhasse, tudo o que via eram ferramentas agrícolas abandonadas e áreas
desertas do que seriam pastagens. Os únicos animais visíveis eram corvos magros
a voar em círculos no céu. Onde estavam as pessoas? Shh! Lilli parou de repente
e levantou a mão. Está ouvindo? O quê?» In Anne Fortier, A Irmandade Perdida,
2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.
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