sábado, 21 de dezembro de 2019

A Irmandade Perdida. Anne Fortier. «O aconchego da família, as preocupações e mexericos, tudo se mesclava num sonho radiante e feliz, um mundo de inocência impossível que agora existia apenas em palavras»

Cortesia de wikipedia e jdact

Norte de África
«(…) Mirina e Lilli seguiram o rio por dez dias. Tinham água de sobra para beber, mas a terra que as cercava de ambos os lados era estéril. Sempre que Mirina encontrava alguma planta que lhe parecesse minimamente comestível, mascava algumas folhas ou pedaços da raiz e esperava um pouco para observar os seus possíveis efeitos. Só então a oferecia a Lilli. E toda a vez que o regato preguiçoso empoçava em algum ponto, ela o vasculhava na tentativa de pegar um peixe solitário. Nos dias mais quentes, um animal ou dois podiam descer até ao rio em busca de água e, graças ao seu arco e a algumas flechas restantes, Mirina em geral conseguia obter essa carne desconhecida para o jantar. Esses eram os momentos bons. Elas ficavam acordadas até tarde, comendo até se fartarem, e inevitavelmente se pegavam relembrando a vida de antes. Como as mazelas diárias de seu povoado agora pareciam triviais. E como ganhavam valor todos os pequenos prazeres. O aconchego da família, as preocupações e mexericos, tudo se mesclava num sonho radiante e feliz, um mundo de inocência impossível que agora existia apenas em palavras.
Como Mirina e Lilli tinham nascido no povoado de Tamash, as duas sempre haviam pensado nele como o seu lar. E quando as outras crianças zombavam delas por serem estrangeiras, com hábitos estrangeiros, a mãe apenas descartava os comentários, e garantia às filhas que os outros não sabiam o que estavam dizendo. Eles acham que uma mulher ter filhos com homens diferentes é uma coisa má, dizia ela, revirando os olhos. Mal sabem que o pai deles mesmos talvez não seja quem acham que é. Além da acusação de promiscuidade, havia também a questão das misteriosas habilidades de sua mãe com ervas e raízes. Contudo, embora as mulheres da aldeia pudessem passar os dias na bisbilhotice sobre o seu comportamento pecaminoso, bastava alguma doença acometê-las para que aparecessem na porta da sua casa implorando remédio.
Mais de uma vez, os anciãos, com belas túnicas e bastões esculpidos, tinham visitado o seu casebre para pedir a Talla que parasse de praticar as suas artes estrangeiras. Mas ela só fizera balançar a cabeça, pois sabia que as mulheres do povoado jamais os deixariam expulsá-la. Numa ocasião específica, Mirina lembrava-se de ter ouvido a mãe provocar o chefe da aldeia dizendo: você acha que eu joguei um feitiço no seu passarinho caolho, Nholo? Quem sabe se você não passasse o dia inteiro sentado em cima dele, falando bobagem, ele conseguisse voar de novo. Agora até esses instantes infelizes pareciam maravilhosos ao serem recordados. Implicâncias eram esquecidas; dívidas, perdoadas. Mirina se assombrou ao constatar como a morte levava embora todos os detalhes incómodos da vida e tornava puro e acolhedor um povoado inteiro de pessoas mesquinhas. Conforme os dias da monótona viagem iam passando, as irmãs muitas vezes retornavam às mesmas lembranças, como se o prazer aumentasse com a repetição.
Ainda consigo ver, dizia Lilli, disfarçando uma risadinha. Mãe tentando pegar o velho galo... Ah, como ela ficou brava! E todos aqueles meninos perdidamente apaixonados por você, mas com medo até de sorrir na sua frente... Mirina nunca repreendia a irmã por falar assim. Apenas ria também e a deixava vagar por esse passado imaginário pelo máximo de tempo possível. Sabia que o presente não tardaria a se impôr. No décimo primeiro dia, o rio se alargou formando um delta, e então, por fim, Mirina começou a ver indícios de outros seres humanos. Canais rasos escavados para irrigação deixavam a paisagem parecida com teias de aranha, mas mesmo assim nenhuma gota d’água chegava até aos campos. O chão ali era tão seco quanto na sua aldeia e não havia um agricultor sequer à vista. O que foi?, perguntou Lilli, incomodada pelo longo silêncio da irmã. Nada. Mirina tentou parecer alegre, mas a verdade era que estava morta de preocupação. Para onde quer que olhasse, tudo o que via eram ferramentas agrícolas abandonadas e áreas desertas do que seriam pastagens. Os únicos animais visíveis eram corvos magros a voar em círculos no céu. Onde estavam as pessoas? Shh! Lilli parou de repente e levantou a mão. Está ouvindo? O quê?» In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.
                                                                      
Cortesia de EArqueiro/JDACT