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A
Letra Pitagórica
«(…) Bebo agradado, fitando-a nos
olhos e sorrindo. Ela retribui-me sem rebuço o olhar e o sorriso, franco,
aberto, como um fio de água sem lodo. A noite caía. Éramos noviços de São
Francisco de Évora, dizia Diogo na sua simplicidade. Tinha acaso um palheiro
onde pudéssemos dormir? De imediato se levanta a moça. Que ia falar à mãe. Esperássemos
um pouco. Foi dentro e não tarda a aparecer a mãe, mulher ainda fresca, toda
embiocada de preto, de uma viuvez recente. Morrera-lhe o marido numa refrega
com os árabes no Norte de África. Aproximamo-nos. Mede-nos dos pés à cabeça. Sois
do Convento de São Francisco?, pergunta. Somos, responde Diogo. Não trazeis
hábito, nota. Somos noviços. Tomaremos hábito daqui a alguns dias ou semanas. Eu
conservava-me calado e pensativo, a olhar a moça. Recortava-se-lhe a figura por
detrás da mãe no escuro da porta, o corpo fino, esbelto, onduloso, a adivinhar-se
sob a roupa justa, o corpete a realçar o relevo dos seios. Olhava para mim e sorria.
Sentia-me subitamente perturbado, de uma perturbação que já de outras vezes
experimentara ao olhar outras raparigas. Era este mais um motivo porque considerava
não ter vocação para padre. Temos um coberto atrás da casa. Há lá boa palha.
Limpa. Podereis ficar lá. Vinde por aqui. Levou-nos, contornando a casa, até às
traseiras. Um cão enorme desatou a ladrar e a forçar a corrente. A moça correu
a segurá-lo. Quieto, Pastor!, ralhou
ela a meia voz, ameaçando-o com a mão levantada. Mas Pastor resolveu apenas mudar o
registo das ameaças e pôs-se a rosnar. Que aquilo era tudo fita, dizia-me a
rapariga. Ele era manso que nem um cordeiro. Enquanto a mãe se dirigia ao
coberto, seguida de Diogo, aproximei-me do cão e fiz-lhe uma festa na cabeça.
Calou-se a lamber-me a mão. A moça largou a corrente e o cão, livre, pôs-se a
farejar-me, num exame meticuloso, e por fim resolveu que eu era persona grata. Ela
caminhou para junto da mãe e eu fiquei parado a vê-la. O cão deitou-se, eu
baixei-me a afagá-lo, olhando a moça, que se virou para trás. Os nossos olhos
encontraram-se.
Ela estava muito corada e séria.
Eu tinha uma enorme angústia na alma. Que me estava a acontecer? A mãe indicava
a um canto um sítio que considerava abrigado e, a seu modo, acolhedor. Diogo
agradecia. Se não queríamos comer qualquer coisa? Não se apoquentasse sua mecê.
Tínhamos ainda do nosso farnel e não queríamos dar-lhes mais incomodo. Então
até amanhã. Espero que durmais bem. Até qualquer dia e obrigados. Seguiremos
caminho muito cedo e é natural não nos vermos. Mas um dia, quando já formos
frades, passaremos por aqui a agradecer-vos melhor. Até amanhã, repetiu a
mulher. Até amanhã, disse a filha com voz sumida dirigindo-se a mim. Até amanhã,
desenharam os meus lábios quase sem som, se Deus quiser!, emendava Diogo, com
os braços em cruz sobre o peito.
Essa
noite comecei a sentir arrepios e suores frios. De madrugada ardia em febre. Quando
Diogo acordou disse-lhe como me encontrava. Pôs-me a mão na testa. Lh! Deus do
Céu! Como ardia! Devia de ser a febre das carraças. Não me podia levantar
naquele estado, deixasse-me estar ali. Ia pedir à dona da casa que lhe emprestasse
um cobertor, para me agasalhar melhor, e ver se ela podia arranjar uma tisana
quente de dedaleira ou de tamarindo. Depois ia a Évora por um boticário.
Esperava não se demorar. Saiu. Deu a volta à casa. Senti-o bater à porta e
ouvi-os falar por algum tempo. Não tardou muito que aparecessem os três. A mãe,
sabendo como eu estava, não consentiu que ficasse ali no coberto. Que tinha um
quarto vago em casa e era para lá que eu devia ir até vir o boticário ou o físico.
Eu não estava em condições sequer de esboçar qualquer opinião ou protestar pelo
incómodo que ia causar. Diogo agradeceu e ajudaram-me a caminhar até casa e
deitaram-me». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva,
Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT