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A
descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) E tinha razão. Nos momentos de maior desalento, o Senhor
sempre me apareceu na forma de uma ave, talvez por me ser mais fácil ver a
beleza da criação nessas criaturas dotadas da capacidade de voar. Recordando a
sabedoria de outras palavras de meu tio, disse então a tia Ester: o demónio não
passa de uma metáfora. É um modo de
falar da religião. As palavras não podem ter sempre um significado corrente. Valha-me
Deus, é ainda muito cedo para filosofias cabalísticas!, respondeu. O tom áspero
de tia Ester levou Judas a subir para o banco para junto de mim. Tinha os
lábios cerrados naquela fenda de silêncio forçado que os brados e as palmadas
de minha mãe lhe tinham ensinado. Ultimamente, tinha aprendido tudo o que
pudesse evitar-lhe vir a ser o último, o mais pesado fardo para ela,
atravessava na ponta dos pés, sem correr, a sua infância. O alçapão da cave,
num dos cantos da cozinha, abriu-se subitamente. Meu tio Abraão, o meu mestre
espiritual, surgiu ao topo das escadas, a fronte banhada em suor e o cabelo
despenteado apontando para cem diferentes direcções, como se tivesse
atravessado alguma tempestade espiritual. Parecia um pequeno tentilhão, de
movimentos rápidos, com o seu rosto pontiagudo dividido ao meio por um nariz
comprido e anguloso que lhe dava um ar que divertia os estranhos, mas que
aqueles que o conheciam associavam à sua inteligência
penetrante. A sua suave pele morena, cor de canela, parecia fazer sobressair o
tufo rebelde de cabelos prateados e as suas sobrancelhas espessas. Uma barba
grisalha adoçava-lhe as faces, que ao se afundarem um pouco acrescentavam ao
seu rosto a sombra da sageza da idade. Os seus olhos, particularmente depois
das orações, luziam com aquela secreta luz verde, o subtil mistério que o marcava
imediatamente como sendo um mestre cabalista.
Quem temos por cá?, interrogou-se, semicerrando os olhos.
Ah, é o nosso amigo frade! Mas de onde virá ele?, interrogou-se frei Carlos,
que nunca se habituara a ver meu tio aparecer saído do nada Ainda há momentos
andámos a ver na cave. Às vezes chego a pensar que é um lez. O que é um lez?,
perguntou Judas. Um espírito que volta à terra para pregar partidas, um
espírito brincalhão, respondi. Meu tio fez um sorriso divertido e abanou a mão
direita para mostrar que tinha cinco dedos, as lendas judaicas diziam que os
lezim só tinham quatro dedos. Os meus movimentos acompanham os mistérios da
vida, disse ele com um gesto displicente. Erguendo as sobrancelhas, fez um
aceno inquisitivo em direcção às vozes abafadas que nos chegavam das traseiras.
Dona Meneses, expliquei. Trouxe tecido para outro vestido. Desta vez púrpura. Bebeu
o café e, depois de breve bênção, devorou um ovo cozido. Shaharit, as orações
da manhã, já haviam passado, mas voltou a dar-me os bons dias com um beijo nos
lábios. Pondo Judas no colo, perseguia-o com beijos repenicados e rosnadelas de
brincadeira. Habitualmente discreto, ao chegar o tempo da Páscoa meu tio
parecia aturdido de afeição. Vim cá só para dizer que decidi não vender a
safira, disse frei Carlos com um suspiro que parecia um pedido de desculpa. Os
lábios de meu tio franziram-se na expressão que o fazia parecer ameaçador. Acho
que devia reconsiderar, disse ele.
Agora compra pedras preciosas?, perguntei. Fitei minha tia
esperando vê-la protestar. Mas ela estava ocupada, com os olhos postos no Livro
de Salmos que recentemente tinha copiado para um fidalgo cristão-velho, relendo-o atentamente. Se
tivéssemos dinheiro para isso, podíamos fechar a loja e deixar este deserto por
umas semanas - acrescentei, voltando-me para meu tio. Uma safira talhada no
tempo do Rabi Salomão Ben Cabirol, respondeu, dirigindo-me um olhar desafiador
e exprimindo-se em hebreu, mas dizendo em português a palavra safira. Salomão
Ben Cabirol era um grande poeta judeu do século XI, de Málaga. Acho que não
estou a ver que caminho seguem os seus pensamentos, disse eu. Ptab
etatsmahah hefee shetíftah delet. Bate em ti como se batesses a uma
porta, retorquiu meu tio. Era um modo condescendente de me dizer para ficar
calado e procurar dentro de mim uma resposta. Ainda é cedo para os seus
conselhos místicos, repliquei. Como resposta, limitou-se a deitar água na minha
tijela.
Bebe que já não te zangas. Os fluidos limpam a bílis branca do teu
sistema. Mais líquido e ainda me
afogo, respondi. Hás-de afogar-te, mas é só quando desapareceres no
oceano de Deus, disse, levando aos
lábios um dedo a pedir silêncio. Depois,
voltando-se para frei Carlos, acrescentou num tom
mais grave: a safira pode perder-se, não sei se sabe. A responsabilidade é minha. O
meu mestre levantou judas do colo e sentou-o numa almofada persa. Senta agora aí, disse. E
continuou, para frei Carlos: perder-se para sempre, queria eu dizer. A
sua posição põe-no em risco. Ouvindo-o,
compreendi que não era de pedras preciosas que
se estava a falar. Safira era um nome de código para Sefer, livro, em hebraico. Estava sem
dúvida a tentar comprar uma obra de Rabi Salomão Gabirol para o fazer sair
clandestinamente de Portugal. Mas porque haveriam de falar em código dentro de
nossa casa, onde estávamos a salvo dos olhos e ouvidos dos cristãos-velhos? Frei Carlos acenou com um gesto de desculpa e levantou-se para se
despedir. Só um aviso: vou continuar a tentar convencê-lo, disse o meu mestre com uma firme determinação na sua voz». In Richard Zimler, O Último Cabalista de
Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
Cortesia
de QuetzalE/JDACT