«Disse
o revisor, Sim, o nome deste sinal é deleátur, usamo-lo quando precisamos
suprimir e apagar, a própria palavra o está a dizer, e tanto vale para letras
soltas como para palavras completas, Lembra-me uma cobra que se tivesse
arrependido no momento de morder a cauda, Bem observado, senhor doutor,
realmente, por muito agarrados que estejamos à vida, até uma serpente hesitaria
diante da eternidade, Faça-me aí o desenho, mas devagar, É facílimo basta
apanhar-lhe o jeito, quem olhar distraidamente cuidará que a mão vai traçar o
terrível círculo, mas não, repare que não rematei o movimento aqui onde o tinha
começado, passei-lhe ao lado, por dentro, e agora vou continuar para baixo até
cortar a parte inferior da curva, afinal o que parece mesmo é a letra Q maiúscula,
nada mais, Que pena, um desenho que prometia tanto, Contentemo-nos com a ilusão
da semelhança, porém, em verdade lhe digo, senhor doutor, se me posso exprimir
em estilo profético, que o interesse da vida onde sempre esteve foi nas diferenças,
Que tem isso que ver com a revisão tipográfica, Os senhores autores vivem nas
alturas, não gastam o precioso saber em despiciências e insignificâncias,
letras feridas, trocadas, invertidas, que assim lhes classificávamos os
defeitos no tempo da composição manual, diferença e defeito, então, era tudo
um, Confesso que os meus deleatures são menos rigorosos, um rabisco dá-me para tudo,
confio-me à sagacidade dos tipógrafos, essa tribu colateral da edípica e
celebrada família dos farmacêuticos, capazes até de decifrar o que nem chegou a
ser escrito, E depois os revisores que acudam a resolver os problemas, Sois
nossos anjos-da-guarda, a vós nos confiamos, você, por exemplo, traz-me à
lembrança a minha extremosa mãe, que me fazia e tornava a fazer a risca do
cabelo até ficar como traçada a tira-linhas, Obrigado pela comparação, mas, se
a sua mãezinha já morreu, valia-lhe a pena agora aperfeiçoar-se por sua conta,
sempre chega o dia em que é preciso corrigir mais no profundo, Corrigir,
corrijo eu, mas as piores dificuldades resolvo-as à maneira expedita,
escrevendo uma palavra por cima de outra, Tenho reparado, Não o diga nesse tom,
dentro do que cabe faço o que posso, e quem consegue fazer o que pode, A mais não
estará obrigado, sim senhor, sobretudo, como é o seu caso, quando falta o gosto
da modificação, o prazer da mudança, o sentido da emenda, Os autores emendam
sempre, somos os eternos insatisfeitos, Nem têm outro remédio, que a perfeição
tem exclusiva morada no reino dos céus, mas o emendar dos autores é outro,
problemático, muito diferente deste nosso, Quer você dizer na sua que a seita
revisora gosta do que faz, Tão longe não ouso ir, depende da vocação, e revisor
de vocação é fenómeno desconhecido, no entanto, o que parece demonstrado é que,
no mais secreto das nossas almas secretas, nós, revisores, somos voluptuosos,
Essa nunca eu tinha ouvido, Cada dia traz sua alegria e sua pena, e também sua
lição proveitosa, É por experiência que fala, Refere-se à lição, Refiro-me à
volúpia, Claro que falo por experiência própria, alguma haveria eu de ter, que é
que julga, mas igualmente tenho beneficiado da observação dos comportamentos
alheios, que é ciência moral não menos edificadora, Certos autores do passado,
se os julgarmos por esse seu critério, seriam gente da espécie, revisores magníficos,
estou a lembrar-me das provas revistas pelo Balzac, um deslumbramento pirotécnico
de correcções e aditamentos, O mesmo fazia o nosso Eça doméstico, para que não
fique sem menção um exemplo pátrio, Agora me ocorre que tanto o Eça como o
Balzac se sentiriam os mais felizes dos homens, nos tempos de hoje, diante de
um computador, interpolando, transpondo, recorrendo linhas, trocando capítulos,
E nós, leitores, nunca saberíamos por que caminhos eles andaram e se perderam
antes de alcançarem a definitiva forma, se existe tal coisa, Ora, ora, o que
conta é o resultado, não adianta nada conhecer os tenteios e hesitações de Camões
e Dante, O senhor doutor é um homem prático, moderno, já está a viver no século
vinte e dois, Diga-me cá, os outros sinais, também levam nomes latinos, como o
deleatur, Se os levam, ou levaram, não sei, não estou habilitado, talvez fossem
tão difíceis de pronunciar que se perderam, Na noite dos tempos, Desculpar-me-á
se o contradigo, mas eu não empregaria a frase, Calculo que por ser
lugar-comum, Nanja por isso, os lugares-comuns, as frases feitas, os bordões,
os narizes-de-cera, as sentenças de almanaque, os rifões e provérbios, tudo
pode aparecer como novidade, a questão está só em saber manejar adequadamente
as palavras que estejam antes e depois, Então por que não diria você noite dos
tempos, Porque os tempos deixaram de ser noite de si mesmos quando as pessoas
começaram a escrever, ou a emendar, torno a dizer, que é obra doutro requinte e
outra transfiguração, Gosto da frase, Eu também, principalmente porque é a
primeira vez que a digo, à segunda vez terá menos graça, Ter-se-á tornado em
lugar-comum, Ou tópico, que é vocábulo erudito, Creio perceber nas suas
palavras uma certa amargura céptica, Vejo-a mais como um cepticismo amargo,
Quem diz uma coisa, diz outra, Mas não dirá o mesmo, os autores costumavam ter bom
ouvido para estas diferenças, Talvez se me estejam a endurecer os tímpanos, Desculpe,
foi sem intenção, Não sou susceptível, adiante, diga-me antes por que se sente assim
amargo, ou céptico, como queira, Considere, senhor doutor, a vida quotidiana
dos revisores, pense na tragédia de terem de ler uma vez, duas, três, ou
quatro, ou cinco vezes, livros que, Provavelmente, nem uma só vez o mereceriam,
Fique registado que não fui eu quem proferiu tão gravosas palavras, conheço muito
bem o meu lugar na sociedade das letras, voluptuoso, sim, confesso-o, mas
respeitador». In José Saramago, História do Cerco de Lisboa, Editorial Caminho, 1989,
ISBN 972-210-375-X, ISBN 978-972-210-375-6.
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