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Se
podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
«(…)
Tal como o cego havia dito, a casa ficava perto. Mas os passeios estavam todos
ocupados por automóveis, não encontraram espaço para arrumar o carro, por isso
foram obrigados a ir procurar sítio numa das ruas transversais. Ali, como por
causa da estreiteza do passeio a porta do assento ao lado do condutor ia ficar
a pouco mais de um palmo da parede. O cego, para não passar pela angústia de
arrastar-se de um assento ao outro, com a alavanca da caixa de velocidades e o
volante a atrapalhá-lo, teve de sair primeiro. Desamparado, no meio da rua,
sentindo que o chão lhe fugia debaixo dos pés, tentou conter a aflição que lhe
subia pela garganta. Agitava as mãos à frente da cara, nervosamente, como se
nadasse naquilo a que chamara um mar de leite, mas a boca já se lhe abria para
lançar um grito de socorro, foi no último momento que a mão do outro lhe tocou
de leve no braço, Acalme-se, eu levo-o. Foram andando muito devagar, com o medo
de cair o cego arrastava os pés, mas isso fazia-o tropeçar nas irregularidades
da calçada, Tenha paciência, já estamos quase a chegar, murmurava o outro, e um
pouco mais adiante perguntou, Está alguém em sua casa que possa tomar conta de
si, e o cego respondeu, Não sei, a minha mulher ainda não deve ter vindo do
trabalho, eu hoje é que calhei sair mais cedo, e logo me sucede isto, Verá que
não vai ser nada, nunca ouvi dizer que alguém tivesse ficado cego assim de
repente, Que eu até me gabava de não usar óculos, nunca precisei, Então, já vê.
Tinham chegado à porta do prédio, duas mulheres da vizinhança olharam curiosas
a cena, vai ali aquele vizinho levado pelo braço, mas nenhuma delas teve a
ideia de perguntar, Entrou-lhe alguma coisa para os olhos, não lhes ocorreu, e
tão-pouco ele lhes poderia responder, Sim, entrou-me um mar de leite. Já dentro
do prédio, o cego disse, Muito obrigado, desculpe o transtorno que lhe causei,
agora eu cá me arranjo.
Ora essa, eu subo consigo, não
ficaria descansado se o deixasse aqui. Entraram dificilmente no elevador
apertado, Em que andar mora, No terceiro, não imagina quanto lhe estou
agradecido, Não me agradeça, hoje por si, Sim, tem razão, amanhã por si. O
elevador parou, saíram para o patamar, Quer que o ajude a abrir a porta,
Obrigado, isso eu acho que posso fazer. Tirou do bolso um pequeno molho de
chaves, tacteou-as, uma por uma, ao longo do denteado, disse, Esta deve de ser
e, apalpando a fechadura com as pontas dos dedos da mão esquerda, tentou abrir
a porta, Não é esta, Deixe-me cá ver, eu ajudo-o. A porta abriu-se à terceira
tentativa. Então o cego perguntou para dentro, Estás aí. Ninguém respondeu, e
ele, Era o que eu dizia, ainda não veio. Levando as mãos adiante, às
apalpadelas, passou para o corredor, depois voltou-se cautelosamente,
orientando a cara na direcção em que calculava encontrar-se o outro, Como
poderei agradecer-lhe, disse, não fiz mais que o meu dever, justificou o bom
samaritano, não me agradeça, e acrescentou, Quer que o ajude a instalar-se, que
lhe faça companhia enquanto a sua mulher não chega. O zelo pareceu de repente
suspeito ao cego, evidentemente não iria deixar entrar em casa uma pessoa
desconhecida que, no fim de contas, bem poderia estar a tramar, naquele preciso
momento, como haveria de reduzir, atar e amordaçar o infeliz cego sem defesa,
para depois deitar a mão ao que encontrasse de valor. Não é preciso, não se
incomode, disse, eu fico bem, e repetiu enquanto ia fechando a porta
lentamente, Não é preciso, não é preciso.
Suspirou de alívio ao ouvir o
ruído do elevador descendo. Num gesto maquinal, sem se lembrar do estado em que
se encontrava, afastou a tampa do ralo da porta e espreitou para fora. Era como
se houvesse um muro branco do outro lado. Sentia o contacto do aro metálico na
arcada supraciliar, roçava com as pestanas a minúscula lente, mas não os podia
ver, a insondável brancura cobria tudo. Sabia que estava na sua casa,
reconhecia-a pelo odor, pela atmosfera, pelo silêncio, distinguia os móveis e
os objectos só de tocar-lhes, passar-lhes os dedos por cima, ao de leve, mas
era também como se tudo isto estivesse já a diluir-se numa espécie de estranha
dimensão, sem direcções nem referências, sem norte nem sul, sem baixo nem alto.
Como toda a gente provavelmente o fez, jogara algumas vezes consigo mesmo, na
adolescência, ao jogo do E se eu fosse cego, e chegara à conclusão, ao cabo de
cinco minutos com os olhos fechados, de que a cegueira, sem dúvida alguma uma
terrível desgraça, poderia, ainda assim, ser relativamente suportável se a
vítima de tal infelicidade tivesse conservado uma lembrança suficiente, não só
das cores, mas também das formas e dos planos, das superfícies e dos contornos,
supondo, claro está, que a dita cegueira não fosse de nascença». In José
Saramago, Ensaio Sobre a Cegueira, Editorial Caminho, 1995, ISBN 972-211-021-7.
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