Cortesia
de wikipedia e jdact
«Nos seus contornos
gerais, o modo de funcionamento e os efeitos da censura no período do Estado
Novo português são bem conhecidos, o mesmo acontecendo com a sua repercussão sobre
a criação literária. Apesar disso, continuam a faltar trabalhos aprofundados
sobre casos concretos. É um pequeno contributo nesse sentido que este artigo
procura dar, abordando o processo judicial que teve por base a Antologia de poesia portuguesa erótica e
satírica (Correia, 1966), no qual figuraram como réus Natália
Correia, a organizadora, Fernando Ribeiro Melo, o editor, e alguns dos poetas
com textos incluídos no volume e que estavam vivos à época. Com efeito, há
neste caso uma série de elementos ignorados e que vale a pena revelar e tomar
como motivo de reflexão, numa época em que quase todos os protagonistas já
desapareceram, e, em muitos casos, foram esquecidos, e em que outras formas de
censura e de vigilância do pensamento se vão impondo. O primeiro aspecto menos
conhecido tem a ver com a duração do processo: sete anos e meio, o tempo que
separa a primeira peça, datada de 17-1-1966, da última, de 27-6-1973. Aquela é
o despachobque manda instaurar procedimento criminal contra os responsáveis da Antologia, com o argumento de que
se trata (…) em cada um dos seus escritos, especialmente dos inéditos da autora
e de outros que ela divulgou, e no seu conjunto [de] um caso de evidente ultraje
à moral pública. O último elemento é o Auto de Inutilização [pelo fogo] do Livro
Denominado Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, em que foi
oficiante o juiz corregedor João Sá Alves Cortez, que chegaria a juiz do
Supremo Tribunal de Justiça em Setembro de 1984, e o adjunto do Procurador da República
Carlos Manuel Costa Saraiva. Com a referência a este aspecto não quero sugerir
apenas que a lentidão da máquina judicial não é exclusiva da democracia; quero
sobretudo pôr em evidência uma das peripécias mais interessantes do processo, a
existência de dois inquéritos e de duas acusações, devido a um erro na primeira
fase, detectado e declarado pelo ajudante
(termo da época) do Procurador da República no 4.º Juízo Criminal de Lisboa.
O segundo aspecto
menos conhecido tem a ver com os elementos concretos da acusação. Depois de uma
fase de interrogatório na subdirectoria da Polícia Judiciária de Lisboa, que começa
a 18-1-1966 com Natália Correia, a acusação será feita a 9-7-1966, vindo
assinada por Fernando Lopes Melo. No seu ponto 4, lê-se o seguinte:
A
publicação do referido livro é uma empresa dolosa de todos os arguidos,
principalmente da Natália Correia e do Bento Melo, com mero intuito de explorar
a desmoralização (sobretudo da juventude) sob o disfarce de apologia da
liberdade, boa-fé, consciência (sic) límpida, cultura, obra e erudição e de
civismo.
Mais à frente, no ponto 12, acrescenta-se:
Os
escritos e os desenhos do mencionado livro que, segundo o consenso da
generalidade das pessoas, são pornográficos, torpes, obscenos e de linguagem
despejada conscientemente ofenderam publicamente, e podem continuar a ofender,
o pudor geral, a decência pública, os bons costumes, o pudor sexual, a
moralidade pública, // revelando até um propósito ultrajante.
No ponto seguinte
são apresentados exemplos de passagens dos textos antologiados que, na perspectiva
do acusador, consubstanciam a afirmação anterior. A consideração do conjunto
suscita várias observações, a começar pelo facto de os trechos apresentados,
sendo numerosos, pertencerem a um leque relativamente pequeno de autores, de um
modo geral próximos de nós no tempo. De facto, são apenas seis os poetas não
contemporâneos, três do século XVIII (António Lobo Carvalho, com quatro
exemplos, José Agostinho Macedo, com três, e Bocage, com nove) e três do século
XIX ou que nesse século maioritariamente exerceram a sua actividade (Sebastião
Xavier Botelho, com um trecho, José Anselmo Correia Henriques, com dois, e
Guerra Junqueiro, com um). Os restantes cinco eram contemporâneos, do século
XX, embora só os dois últimos estivessem vivos em 1966: Silva Tavares (†1963),
com um exemplo; Carlos Queiroz (†1949), também com um; Francisco Eugénio Santos
Tavares (†1963), com cinco; Natália Correia, com um; Luiz Pacheco (†2008),
também com um. Olhando depois para os trechos citados pelo acusador,
verifica-se que houve uma clara secundarização da vertente satírica, apesar do
conteúdo sociopolítico que ela apresenta em alguns casos, valorizando-se quase
que em exclusivo a dimensão erótica e, dentro desta, o uso do chamado palavrão,
em particular o que designa órgãos e práticas sexuais (v.g. co…/co…, crica, cu, cagueiro, cara…, caral…, caralh…,
porra, arquiporra, pica,
piça, mangal…, col…, pentelho, fod…, fornic…, lang…, min…, cor…, pu…). A leitura parece pois ter sido
feita em diagonal, de meio do volume para a frente (além dos poetas medievais,
ficaram de fora vários clássicos), e com o mero objectivo de encontrar palavras
e expressões que chocassem, quod
erat demonstrandum». In Francisco Topa, A sádica
nostalgia das fogueiras do santo ofício: o processo judicial contra a Antologia
de poesia portuguesa erótica e satírica, See discussions, stats, and author profiles
for this publication, https://www.researchgate.net/publication/318947457, Universidade
do Porto, Academia, 2015-2017, Wikipedia.
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