domingo, 29 de dezembro de 2019

Um Amor Feliz. David Mourão-Ferreira. «Também conheço algumas mulheres, providas de útero e de nádegas, que não passam de nuvens. De tudo isto o mais feio é só a palavra nádegas»

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«(…) Veio depois o Natal; e você publicou, nessa altura, o seu primeiro livro de poemas. Precisamente na antevéspera de Natal encontrei aqui o exemplar que me enviou, só para mim, com a sibilina dedicatória que se impunha. Porque será que apenas agora, quase à beira de outro Natal, com o seu livro de novo aqui à mão e tendo-o já relido por várias vezes, me renasce o desejo de dizer-lhe o que logo nessa ocasião me apetecia ter dito? Não aprecio por aí além, e isso já não é novidade para si, o título que você lhe deu: parece-me, por um lado, inutilmente provocatório e, por outro, injustamente limitativo, como se os seus versos apenas valessem por essa estéril coragem d’épater le bourgeois. O burguês, hoje em dia, já mal existe; e, quando existe, não se escandaliza com coisa alguma: nem com o que a Igreja ainda lhe proíbe nem com o que os sex-shops passaram a fornecer-lhe. Quem é que você escandaliza, a não ser talvez o seu marido, ao comparar-se à Tera que se masturba / debaixo da chuva ou à praia que se vem com o Sol / enquanto o Mar se vem com a Lua? Que almas sensíveis, a não ser porventura a já aludida, julga você ter melindrado ao confessar que lhe falta a experiência de ser igual a uma barca, / no mar alto, / ao mesmo tempo enfiada / por três mastros? E que defuntas pudicícias pensa você ter ofendido ao engastar, nos seus versos, inúmeros termos anatómicos que já são hoje do conhecimento das criancinhas da instrução primária?
A respeito de alguns poemas, mais longos, tenho às vezes pena de que não sejam menos longos: fosse eu entendido em poesia, gostaria de lhe poder explicar porquê. Mas, voltando aos outros, há pelo menos um, que me parece aliás encontrar-se a meio caminho entre os que são somente provocatórios e os que já são um tanto mais que provocatórios, em relação ao qual sinto simultaneamente uma certa frustração e uma espécie de fascínio, de perturbado fascínio. É aquele em que você colocou uma epígrafe do Vinícius de Moraes:

Julguei felizes as nuvens por não terem útero,
até me darem lástima por não terem nádegas.
Não quero dizer com isto que não tenham
muitas vezes a forma de um útero,
o volume de nádegas.

Também conheço algumas mulheres,
providas de útero e de nádegas,
que não passam de nuvens.

De tudo isto o mais feio
é só a palavra nádegas.

Só a palavra.

Falo por mim, e de mim, é claro.

Sabe você o que me apeteceu, assim que li estes versos pela primeira vez? Não, não lhe digo. Mas até cheguei a desejar que se anunciasse, em semelhante período, uma daquelas pediátricas reuniões que inevitavelmente nos aproximariam. Infelizmente não aconteceu. Por mais estranho ou paradoxal que pareça, também a Pediatria entra em férias durante o Natal. E soube, a seguir, que vocês tinham ido para o Douro, lá para casa dos seus sogros. E a minha mulher, prometendo a si própria um novo e ainda mais rigoroso regime de emagrecimento para depois das festas, sucumbia entretanto a variadíssimas tentações de broas e de filhoses, de bolo-rei e de rabanadas, de doces de chila e de lampreias de ovos, ora junto da minha mãe, sempre contemplada, no chamado lar a que recolheu, com duas visitas durante esta época, ora, mais amiúde, junto de três tias sobreviventes, ainda com boa dentição, por cujas velhas casas, respectivamente na Lapa, nas Amoreiras e na Estrela, generosamente se repartia, no louvável esforço de uma vez por ano reforçar, em relação à Terceira Idade, a atenção que mais assiduamente concede à Primeira». In David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz, Editorial Presença, Lisboa, 1986, Depósito Legal nº 10705/85.

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