«(…) Veio depois o Natal; e você
publicou, nessa altura, o seu primeiro livro de poemas. Precisamente na
antevéspera de Natal encontrei aqui o exemplar que me enviou, só para mim, com
a sibilina dedicatória que se impunha. Porque será que apenas agora, quase à
beira de outro Natal, com o seu livro de novo aqui à mão e tendo-o já relido
por várias vezes, me renasce o desejo de dizer-lhe o que logo nessa ocasião me
apetecia ter dito? Não aprecio por aí além, e isso já não é novidade para si, o
título que você lhe deu: parece-me, por um lado, inutilmente provocatório e,
por outro, injustamente limitativo, como se os seus versos apenas valessem por
essa estéril coragem d’épater le bourgeois. O burguês, hoje em dia, já
mal existe; e, quando existe, não se escandaliza com coisa alguma: nem com o que
a Igreja ainda lhe proíbe nem com o que os sex-shops passaram a fornecer-lhe. Quem
é que você escandaliza, a não ser talvez o seu marido, ao comparar-se à Tera
que se masturba / debaixo da chuva ou à praia que se vem com o Sol / enquanto o
Mar se vem com a Lua? Que almas sensíveis, a não ser porventura a já aludida,
julga você ter melindrado ao confessar que lhe falta a experiência de ser igual
a uma barca, / no mar alto, / ao mesmo tempo enfiada / por três mastros? E que
defuntas pudicícias pensa você ter ofendido ao engastar, nos seus versos,
inúmeros termos anatómicos que já são hoje do conhecimento das criancinhas da
instrução primária?
A respeito de alguns poemas, mais
longos, tenho às vezes pena de que não sejam menos longos: fosse eu entendido
em poesia, gostaria de lhe poder explicar porquê. Mas, voltando aos outros, há pelo
menos um, que me parece aliás encontrar-se a meio caminho entre os que são
somente provocatórios e os que já são um tanto mais que provocatórios, em relação
ao qual sinto simultaneamente uma certa frustração e uma espécie de fascínio, de
perturbado fascínio. É aquele em que você colocou uma epígrafe do Vinícius de Moraes:
Julguei felizes as nuvens por não
terem útero,
até me darem lástima por não terem
nádegas.
Não quero dizer com isto que não tenham
muitas vezes a forma de um útero,
o volume de nádegas.
Também conheço algumas mulheres,
providas de útero e de nádegas,
que não passam de nuvens.
De tudo isto o mais feio
é só a palavra nádegas.
Só a palavra.
Falo por mim, e de mim, é claro.
Sabe você o que me apeteceu,
assim que li estes versos pela primeira vez? Não, não lhe digo. Mas até cheguei
a desejar que se anunciasse, em semelhante período, uma daquelas pediátricas reuniões
que inevitavelmente nos aproximariam. Infelizmente não aconteceu. Por mais
estranho ou paradoxal que pareça, também a Pediatria entra em férias durante o Natal.
E soube, a seguir, que vocês tinham ido para o Douro, lá para casa dos seus sogros.
E a minha mulher, prometendo a si própria um novo e ainda mais rigoroso regime
de emagrecimento para depois das festas, sucumbia entretanto a variadíssimas
tentações de broas e de filhoses, de bolo-rei e de rabanadas, de doces de chila
e de lampreias de ovos, ora junto da minha mãe, sempre contemplada, no chamado lar
a que recolheu, com duas visitas durante esta época, ora, mais amiúde, junto de
três tias sobreviventes, ainda com boa dentição, por cujas velhas casas, respectivamente
na Lapa, nas Amoreiras e na Estrela, generosamente se repartia, no louvável esforço
de uma vez por ano reforçar, em relação à Terceira Idade, a atenção que mais
assiduamente concede à Primeira». In David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz,
Editorial Presença, Lisboa, 1986, Depósito Legal nº 10705/85.
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