terça-feira, 31 de dezembro de 2019

No 31. Às Portas do Inferno. Domingos Amaral. «Ramiro ajudou o Velho a desmontar, no pátio em frente à Sé, sentindo que em seis anos de convívio se forjara entre eles uma lealdade verdadeira. Agora, os seus caminhos divergiam…»

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Soure. Julho de 1132
«(…) É tempo de morrer em paz. Vou para casa. Os outros não conheciam a sua terra, mas o Velho anunciou que iria para o Norte, e Ramiro aceitou a decisão dele, pois não se devia contrariar um homem daquela idade. Ele tinha o direito de falecer onde desejasse, e o bastardo de Paio Soares decidiu que o acompanharia até Coimbra, onde ia reportar a Afonso Henriques a macabra descoberta que tinham feito nas margens do Nabão. Na madrugada seguinte, em Soure, o Velho despediu-se, emocionado, dos seus companheiros templários e Ramiro mandou-o subir para o seu cavalo. Estavam curtos de animais, iriam os dois juntos, como faziam os pobres cavaleiros de Cristo na Terra Santa.
Enciumado por os ver tão próximos, o Rato atirou-lhes um adeus e avisou Ramiro de que tivesse cuidado no regresso, temendo uma emboscada sarracena. Porém, o bastardo de Paio Soares nem reagiu. No calor das suas clandestinas ternuras, Ramiro garantia sempre ao Rato que, depois das surras que o pai lhe dera em criança, nunca mais tivera medo de nada nem de ninguém.

Coimbra. Julho de 1132
Ramiro ajudou o Velho a desmontar, no pátio em frente à Sé, sentindo que em seis anos de convívio se forjara entre eles uma lealdade verdadeira. Agora, os seus caminhos divergiam, embora o Velho parecesse já arrependido da decisão que tomara. Em voz pesarosa, confessou que ia sentir saudades da camaradagem da Ordem do Templo. Ramiro confortou-o e, depois de um abraço final, subiu pelas escadas de granito da igreja de Coimbra. Em passo lento, o Velho afastou-se, curvado, arrastando os pés, mas uns metros à frente já sorria, embora se tenha mantido encolhido, não fosse alguém vê-lo. O seu talento para a mistificação continuava intacto, enganara bem os colegas. Aproveitando um momento de distracção destes, simulara uma queda desamparada, fingira-se abalado e dorido e apresentara a decisão de partida como inevitável. Por respeito, os companheiros aceitaram-na, crédulos como sempre. Ninguém desconfiara dele e, ao longo de seis anos, fizera por isso.
Alistara-se naquela Ordem a mando de Fernão Peres Trava, que era o seu senhor e lhe dera instruções para se manter vigilante em Soure. O Trava queria um homem da sua confiança integrado secretamente naquela congregação, para acompanhar a busca da relíquia sagrada trazida pelo conde Henrique da Terra Santa. Várias vezes por ano, os dois trocavam curtas mensagens, usando como cúmplice um ferreiro galego, à casa de quem o Velho se começou a dirigir. Porém, mal virou para a rua lateral à Sé, chocou com a princesa Zaida, que saía da biblioteca, muito apressada, e quase deu um trambolhão à sua frente. Desculpai-me, murmurou o Velho, atrapalhado.
A princesa endireitou-se, ajeitando as roupas e escondendo algo no regaço. Parecia claramente comprometida, como se estivesse a fazer o que não devia. A pergunta que lhe dirigiu foi mais uma tentativa de dissipar a desconfiança dele do que uma verdadeira preocupação com a sua saúde: estais bem? Pareceis doente... O Velho limitou-se a encolher os ombros: a velhice não tem cura». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT