A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
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O último Cabalista de Lisboa é, em si, um pouco um enigma. Porque terá sido
escondido na cave de Ayaz Lugo? Porque será que não é referido pelos
manuscritos judaicos seus contemporâneos? Nunca terá sido publicado? Dado o seu
objectivo de alertar os cristãos-novos e os judeus para o permanente perigo que
corriam na Europa, Berequias devia ter tentado seguramente dar-lhe a maior
divulgação possível. Várias explicações me foram propostas por Ruth Pimentel,
da Universidade de Paris, que mais tarde foram seguidas pela maior parte dos
demais especialistas no campo da literatura sefardita medieval que consultei. Antes
de mais nada, a depreciativa caracterização que Berequias faz dos
cristãos-novos e o seu declarado apelo aos judeus e aos cristãos-novos para que
abandonem a Europa haveria certamente de enfurecer os reis europeus e as
autoridades religiosas, em particular os inquisidores de Portugal e de Espanha.
Se ele levasse a sua obra para a Europa cristã, as cópias que fossem
descobertas haveriam de ser eliminadas e queimadas. É também provável que a sua
ardente defesa da imigração judaica haveria de irritar os dirigentes das
enfraquecidas comunidades judaicas da região, tanto os agrupamentos secretos
sefarditas em Portugal e em Espanha como as comunidades mais abertas dos
asquenazins nos países do Norte da Europa. Estes judeus ou cristãos-novos, que
tinham um interesse espiritual, emocional ou monetário para permanecer na
Europa, poderiam igualmente suprimir os seus escritos. Para mais, o modo como
Berequias trata questões como o sexo e o cisma entre cabalistas e autoridades
rabínicas poderia ser considerado demasiado directo para que certos leitores o
pudessem apreciar. Os seus escritos seriam certamente considerados tabu por
muitos dirigentes judaicos conservadores que procuravam resistir à era do judeu
secular que se aproximava. Apesar de me suscitar dúvidas, não posso deixar de referir
uma outra teoria: é possível que o próprio Berequias tivesse suprimido os seus
escritos; não só por não ter querido expor a perseguições os judeus secretos
mencionados no texto, como também porque a excomunhão por alegada heresia não
era nada de desconhecido. Apesar da veemente necessidade de avisar os judeus da
Europa do destino que seu tio pressagiava, pode ter receado ver-se cortado da
sua comunidade, como o foi outro judeu de origem portuguesa um século mais
tarde, Baruch Espinosa. Talvez tenha feito circular em segredo cópias do seu
livro, pedindo aos seus leitores que não revelassem o conteúdo nem mencionassem
sequer a sua existência. Será talvez essa a razão por que não tem título. Outra
razão, bem mais desencorajante: quem sabe se não o mataram ao tentar reentrar
em Portugal e salvar a sua prima Reza? As cópias das suas obras que tivesse
escrito e levado para a Ibéria teriam assim certamente perecido com ele. Apenas
as que tinham ficado escondidas em Constantinopla teriam sobrevivido. Quanto ao
esconderijo, o mais provável é que os manuscritos tivessem sido ocultados para
os proteger durante o período nazi; a cobertura de cimento data desse tempo.
Lembremo-nos que os cristãos-novos portugueses emigraram em massa ao longo dos
séculos XVI, XVII e XVIII, sobretudo para a Turquia, Grécia, Norte de África,
Holanda e Itália, regiões que mais tarde se veriam ameaçadas ou ocupadas pelo
Reich alemão. Por exemplo, nos finais do século XVI, como resultado da
emigração dos cristãos-novos, só Constantinopla contava com uma comunidade
judaica de 30 000 pessoas e 54 sinagogas, a maior da Europa. Durante a II Guerra
Mundial, a maior parte dos judeus ibéricos que viviam na Grécia, Bulgária e
Jugoslávia, 200 000 ou mais, foram presos e morreram nas câmaras de gás. Se
considerarmos o apelo de Berequias para que os judeus e cristãos-novos
deixassem os países cristãos, é interessante notar que a comunidade judaica na
Turquia muçulmana contava com a protecção do Governo e escapou inteiramente à
destruição. Apesar disso, o proprietário ou proprietários dos manuscritos de
Berequias, talvez os pais de Lugo, teriam justamente receado o alastramento das
perseguições à Turquia, tal como Berequias temera o alastramento da Inquisição (maldita) de Castela a
Portugal quatro séculos antes. A Inquisição (maldita) foi definitivamente estabelecida
em Portugal em 1536, cerca de 50 anos depois de ter sido criada em Espanha e
apenas seis anos depois de Berequias ter completado o último dos seus
manuscritos. Teria Ayaz Lugo sabido da existência dos manuscritos? No seu
testamento não lhes faz referência. Possivelmente tinham sido escondidos pelos
seus pais, sem que ele o tivesse sabido. Cabe-me agradecer, antes de mais, a
Abraham Vital, que me ofereceu generosamente a sua casa e, posteriormente, me
permitiu utilizar os textos de Berequias Zarco. Gostaria igualmente de
manifestar o meu apreço à sua mulher, Miriam Rosencrantz Vital, que muitas
vezes me valeu durante os meus tardios serões com um copo de vinho do Porto e
os seus cuscuz caseiros. Este livro é publicado em memória de Berequias Zarco,
família e amigos.
Nota
histórica
Em
Dezembro de 1496, quatro anos depois de expulsarem do seu reino todos os judeus,
os soberanos de Espanha, Fernando e dona Isabel, convenceram o rei de Portugal,
Manuel I, a fazer o mesmo. Em troca, os monarcas espanhóis concediam-lhe em
casamento a mão de sua filha. Pouco antes de a ordem de expulsão ser aplicada,
Manuel I, que não queria perder tão preciosos súbditos, decidiu converter os
judeus portugueses. Em Março de 1497, mandou encerrar todos os portos de
embarque e ordenou que se reunissem todos os judeus e os conduzissem à força à
pia baptismal. Embora os relatos que chegaram até aos nossos dias refiram
judeus que preferiram dar-se à morte e matar os filhos a converterem-se, a
maior parte deles acabaram por se ver forçados a aceitar Jesus como o Messias.
Apelidados de cristãos-novos, foram-lhes dados vinte anos para abandonarem os
usos judaicos tradicionais, promessa essa que se veio a revelar falsa ao longo
das duas décadas de intolerância e perseguições que se seguiram. Mesmo assim,
muitos dos novos cristãos persistiram nas suas crenças. Em segredo e ao preço
de riscos enormes, continuaram a recitar as suas orações hebraicas e a praticar
os seus rituais, sobretudo os do Sabbat e das festas judaicas. Um desses judeus
clandestinos era Berequias Zarco, o narrador d’O último Cabalista de Lisboa. As
circunstâncias que rodearam a descoberta do manuscrito de Zarco em Istambul, em
1990, constam de uma Nota do Autor. Dessa mesma nota constam igualmente algumas
observações quanto ao estilo adoptado na transcrição do texto original. No
entanto, os leitores deverão desde já ter presente que, ao preparar o trabalho
para publicação, esforcei-me por preservar o tom extremamente natural e directo
do autor». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal
Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
Cortesia de QuetzalE/JDACT
JDACT, Richard Zimler, Judeus, História Local, Conhecimentos