«Era um ser estranho, simultaneamente de uma moralidade rígida e cu-riosamente inquieto e instável, de quem, pelo que eu sabia, a mulher se tinha divorciado ao fim de vários anos pelo simples facto de ele viver indiscriminadamente em qualquer lado, desde que fosse longe da mulher e dos filhos. Assustava-me a ideia de que ele se pudesse ter voltado a casar, circunstância propícia a complicar a satisfação do meu pedido, e apressei o passo em direcção ao hospital.
O hospital é um conjunto de edifícios e pavilhões semeados aqui e ali sobre um vasto espaço de jardins; entrei na pequena guarita junto ao portão e pedi ao porteiro sentado atrás de uma mesa para me pôr em contacto com a secção de virologia; ele empurrou o telefone para o canto da mesa do meu lado e disse: Zero dois! Marquei o zero dois e fiquei a saber que o doutor Kostka saíra há alguns segundos e que estaria prestes a chegar à saída. Sentei-me num banco perto da porta principal para me assegurar de que o não perderia, e olhava distraidamente os homens passeando-se em roupão de hospital, de riscas azuis e brancas, quando o vi: vinha pensativo, alto, magro, simpático na sua falta de presença, sim, era mesmo ele. Levantei-me do meu banco e fui direito a ele como se fosse empurrá-lo; deitou-me um olhar de desagrado, mas depressa me reconheceu e me abriu os braços. Senti que a sua surpresa foi de quase felicidade, e a espontaneidade do seu acolhimento deu-me prazer.
Expliquei-lhe que tinha chegado havia uma hora para tratar de um assunto sem importância que me reteria ali perto de dois dias, e ele logo me manifestou a surpresa feliz por a minha primeira visita lhe ter sido dedicada. Foi-me subitamente desagradável não o ter vindo procurar com um espírito desinteressado, por ele só, e a pergunta que lhe fiz (perguntei-lhe jovialmente se voltara a casar) pareceu reflectir uma atenção sincera, quando, no fundo, provinha de um calculismo baixo. Disse-me (para minha satisfação) que continuava só. Declarei que tínhamos muito que contar um ao outro. Ele concordou e lamentou não dispor, infelizmente, de pouco mais de uma hora, visto ter ainda que voltar ao hospital e, no fim da tarde, ter de apanhar um autocarro para fora da cidade. Não mora aqui?, digo, assustado. Assegurou-me que sim, um estúdio num edifício novo, mas que é penoso viver solitário. Soube que Kostka tinha, numa outra cidade a vinte quilómetros, uma noiva professora, possuindo, também ela, um pequeno apartamento de duas assoalhadas. Vai viver com ela futuramente?, perguntei-lhe.
Disse-me que dificilmente encontraria trabalho noutro sítio tão interessante como aquele que lhe arranjara e que, pelo contrário, a sua noiva teria dificuldade em arranjar um lugar aqui. Pus-me a vituperar (de bom coração) as demoras da burocracia, incapaz de facilitar as coisas de maneira a que um homem e uma mulher possam viver juntos. Sossegue, Ludvik, disse-me com uma doce indulgência, que não é assim tão insuportável. A viagem custa-me, é certo, dinheiro e tempo, mas a minha solidão permanece intacta e sou livre. Porque tem um tal desejo de liberdade?, perguntei-lhe. Evocê?, disse ele. Eu ando atrás das raparigas, respondi-lhe. Não é pelas mulheres, é por mim que me faz falta a minha liberdade, disse, e acrescentou: Oiça, venha um momento a minha casa antes de eu me ir embora. Eu não pedia mais que isso.
Saídos do recinto do hospital, logo fomos
dar a um grupo de edifícios novos que, uns a seguir aos outros, se elevavam
desarmoniosamente de um solo poeirento desnivelado (sem relva, sem passeios,
sem asfalto) e formavam um triste cenário nos confins dos campos, vastos e
planos, estendidos a perder de vista. Atravessámos uma porta, subimos uma escada
demasiado estreita (o elevador estava avariado) e detivemo-nos no terceiro
andar, onde reconheci o nome de Kostka no cartão-de-visita. Quando, tendo
atravessado a entrada, nos encontrámos na sala, senti-me mais que satisfeito:
um grande e confortável divã ocupava um canto; além do divã, havia uma pequena
mesa, uma poltrona, uma grande biblioteca, um gira-discos e um aparelho de
rádio». In Milan Kundera, A Brincadeira, Publicações Dom Quixote, 1967, 4ª
edição 1994, ISBN 972-200-014-4.
JDACT, Milan Kundera, Literatura, Conhecimento,