«(…) No segundo conto, O despertar, a nota dominante é
o sentido da liberdade. Apesar de a personagem principal se encontrar
encarcerada, a detenção física não impede que o seu espírito se mova a procurar
com maior intensidade a luz do entendimento e o restabelecimento moral:
A prisão foi para ele de grande utilidade. Nos longos momentos de
solidão reviu o que passara e pensou muito. Acusou-se do que tinha culpas. Era
a menor parte. E tirou de tudo a grande lição. Foi nessas noites de intensa
vigília que readquiriu a confiança em si. E viu que o caminho não estava
irremediavelmente escuro.
A vida intelectual surge como um sonho de liberdade, mas esta liberdade
não pode ser apenas idealizada. Torna-se necessário enfrentar o sofrimento e
construir o futuro: seguiria e com as mãos pequenas, agora calosas das grades
da prisão, trabalharia. Tinha a Vida à sua frente. Tinha mãos para a possuir!.
Outro conto de grande
impacto é A fronteira de asfalto,
que narra a dor do preconceito: é a história de dois jovens, um rapaz negro e
uma rapariga branca, Marina e Ricardo, que são proibidos de manter a amizade
pela mãe da menina:
- Marina, já não és nenhuma
criança para que não compreendas que a tua amizade por esse (…) teu amigo
Ricardo não pode continuar. Isso é muito bonito em criança. Duas crianças. Mas
agora (…) um preto é um preto (…) As minhas amigas todas falam da minha negligência
na tua educação. Que te deixei (…) Bem sabes que não é por mim!
A colocação do asfalto
nas ruas delimita a divisão que existia entre dois territórios, entre o bairro
branco e o musseque, entre dois mundos, funcionando como símbolo da
implementação do sistema colonial e do progresso.
No desfecho do conto, Ricardo, morador do musseque, morre ao tentar entrar em
contacto com Marina, a menina de tranças loiras. A interdição do mundo branco
ao negro africano e a impossibilidade de diálogo entre universos
ideologicamente conflituantes constituem o fio condutor da narrativa. Os
delírios de uma criança doente compõem o conto A cidade e a infância. Zizica é um miúdo loiro que se lembra
das mudanças que ocorreram na cidade: Hoje
muitos edifícios foram construídos. As casas de pau a pique e zinco foram
substituídas por prédios de ferro e cimento, a areia vermelha coberta pelo
asfalto negro e a rua deixou de ser a rua do limão. No meio das suas
memórias, Zizica lembra do dia em que o pai o ensinou a ler a primeira palavra:
guerra. Sonhando, voa num papagaio
de seda e canta lenga-lengas típicas do universo lusófono. Neste caleidoscópio
de emoções, acompanhamos a morte da melhor amiga, a primeira ida ao cinema, as
visitas do médico. Tudo passa, tudo se acaba, ficando da doença, entretanto, a
ideia do início da construção de uma identidade própria.
Nos últimos contos do livro, destacamos Faustino. Mais uma vez, ao sentido da dor se incorpora a
denúncia do racismo. O conto é belo. A beleza não está na dor, nem na denúncia
do racismo, senão no efeito do recurso utilizado para prender a atenção do
leitor: a linguagem funciona como elemento potencial de captação estilística e
uma espécie de mimetismo ou reprodução da oralidade, que começa da seguinte
forma: Contarei agora a história do
Faustino. Não foi a Don’Ana que me contou, não senhor, remetendo o
leitor para o ambiente dos antigos contadores de histórias. Mais do que a
evocação de um tempo feliz, mais do que a representação ideológica do vivido, A cidade e a infância exprime
a consciência da dor como sendo princípio de criação da obra de arte. Em Luandino,
a vivência da dor é matéria-prima de coisas de beleza que nos causam alegria». In Adriana Mello Guimarães, Luandino Vieira, O Mineiro Angolano da Memória,
Artigos e Ensaios, Revista Crioula, nº 3, 2008.
Cortesia de Revista Crioula/JDACT