quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Luandino Vieira. O Mineiro Angolano da Memória. Adriana Mello Guimarães. «A vida intelectual surge como um sonho de liberdade, mas esta liberdade não pode ser apenas idealizada. Torna-se necessário enfrentar o sofrimento e construir o futuro: seguiria e com as mãos pequenas, agora calosas das grades da prisão…»


Cortesia de wikipedia

«(…) No segundo conto, O despertar, a nota dominante é o sentido da liberdade. Apesar de a personagem principal se encontrar encarcerada, a detenção física não impede que o seu espírito se mova a procurar com maior intensidade a luz do entendimento e o restabelecimento moral:

A prisão foi para ele de grande utilidade. Nos longos momentos de solidão reviu o que passara e pensou muito. Acusou-se do que tinha culpas. Era a menor parte. E tirou de tudo a grande lição. Foi nessas noites de intensa vigília que readquiriu a confiança em si. E viu que o caminho não estava irremediavelmente escuro.

A vida intelectual surge como um sonho de liberdade, mas esta liberdade não pode ser apenas idealizada. Torna-se necessário enfrentar o sofrimento e construir o futuro: seguiria e com as mãos pequenas, agora calosas das grades da prisão, trabalharia. Tinha a Vida à sua frente. Tinha mãos para a possuir!.

Outro conto de grande impacto é A fronteira de asfalto, que narra a dor do preconceito: é a história de dois jovens, um rapaz negro e uma rapariga branca, Marina e Ricardo, que são proibidos de manter a amizade pela mãe da menina:

 - Marina, já não és nenhuma criança para que não compreendas que a tua amizade por esse (…) teu amigo Ricardo não pode continuar. Isso é muito bonito em criança. Duas crianças. Mas agora (…) um preto é um preto (…) As minhas amigas todas falam da minha negligência na tua educação. Que te deixei (…) Bem sabes que não é por mim!

A colocação do asfalto nas ruas delimita a divisão que existia entre dois territórios, entre o bairro branco e o musseque, entre dois mundos, funcionando como símbolo da implementação do sistema colonial e do progresso. No desfecho do conto, Ricardo, morador do musseque, morre ao tentar entrar em contacto com Marina, a menina de tranças loiras. A interdição do mundo branco ao negro africano e a impossibilidade de diálogo entre universos ideologicamente conflituantes constituem o fio condutor da narrativa. Os delírios de uma criança doente compõem o conto A cidade e a infância. Zizica é um miúdo loiro que se lembra das mudanças que ocorreram na cidade: Hoje muitos edifícios foram construídos. As casas de pau a pique e zinco foram substituídas por prédios de ferro e cimento, a areia vermelha coberta pelo asfalto negro e a rua deixou de ser a rua do limão. No meio das suas memórias, Zizica lembra do dia em que o pai o ensinou a ler a primeira palavra: guerra. Sonhando, voa num papagaio de seda e canta lenga-lengas típicas do universo lusófono. Neste caleidoscópio de emoções, acompanhamos a morte da melhor amiga, a primeira ida ao cinema, as visitas do médico. Tudo passa, tudo se acaba, ficando da doença, entretanto, a ideia do início da construção de uma identidade própria.
Nos últimos contos do livro, destacamos Faustino. Mais uma vez, ao sentido da dor se incorpora a denúncia do racismo. O conto é belo. A beleza não está na dor, nem na denúncia do racismo, senão no efeito do recurso utilizado para prender a atenção do leitor: a linguagem funciona como elemento potencial de captação estilística e uma espécie de mimetismo ou reprodução da oralidade, que começa da seguinte forma: Contarei agora a história do Faustino. Não foi a Don’Ana que me contou, não senhor, remetendo o leitor para o ambiente dos antigos contadores de histórias. Mais do que a evocação de um tempo feliz, mais do que a representação ideológica do vivido, A cidade e a infância exprime a consciência da dor como sendo princípio de criação da obra de arte. Em Luandino, a vivência da dor é matéria-prima de coisas de beleza que nos causam alegria». In Adriana Mello Guimarães, Luandino Vieira, O Mineiro Angolano da Memória, Artigos e Ensaios, Revista Crioula, nº 3, 2008.

Cortesia de Revista Crioula/JDACT