«(…) Era a época do Estado
Novo, regime autoritário. O que
significava Angola no contexto político-económico do Estado Novo? O
chefe do governo português, António de Oliveira Salazar, atribuiu aos territórios
africanos uma função geográfica estratégica de exploração e de poder. José
Freire Antunes resume assim essa época:
Sem surpresa, a África inspiradora de orgulhosa retórica era, nos anos
40 e 50, uma imagem reflexa da matriz ibérica: o Portugal pré-industrial, com
um rendimento per capita de 250 dólares (o mais baixo da Europa), uma
taxa de analfabetismo de 40%, o mais elevado índice de mortalidade infantil (…)
Angola e Moçambique ficaram longamente condenados a baldios do Portugal Europeu.
E o que dizer da ambiência cultural do colono? Um outro
escritor, António Cardoso, que compartilhou sua infância com Luandino
e foi seu colega, traça um quadro da vida escolar que significa, em poucas palavras,
uma formação opressiva: O liceu era o
estabelecimento de ensino mais forte, onde havia o branco de segunda, um ou
outro preto, alguns mestiços (…) Professores, angolanos, nunca tivemos nenhum.
Parece-nos provável que, desde a infância, a formação escolar tenha gerado em Luandino
o sentimento do oprimido que liga inexoravelmente o indivíduo ao povo da terra,
o que explicaria a sua adopção, por livre escolha, da cidadania angolana. Ou
seja, ao concentrarmo-nos na infância de Luandino, distinguimos uma criança
que se torna adulta à força de
percorrer um caminho semeado de contradições entre o colonizador e o
colonizado; entre o branco e o negro; entre o rico e o pobre. O que o
move nesse percurso senão o sentimento de colonizado, de cópia, de postiço,
de híbrido? O que o torna
criador senão o pensamento dessas
contradições e desse sentimento?
Vivência da dor
Somente a Arte,
esculpindo a humana mágoa, abranda as rochas rígidas, torna água todo o fogo
telúrico profundo e reduz, sem que, entanto, a desintegre, à condição de uma
planície alegre, a aspereza orográfica do mundo! Provo desta maneira ao mundo
odiento pelas razões do sentimento, sem os métodos da abstrusa ciência fria e
os trovões gritadores da dialéctica, que a mais alta expressão da dor estética
consiste essencialmente na alegria. In Augusto
dos Anjos, Monólogo de uma Sombra
A cidade e a infância (contos, 1957), primeiro livro
publicado por Luandino, remete o leitor para a década dos anos quarenta,
altura do início da formação da identidade nacional angolana. A força e o poder
são retratados por dentro, através de imagens do quotidiano. Neste livro, Luandino
inicia um percurso de luta contra a injustiça e começa a criar a sua própria
linguagem.
O livro chama a atenção
das autoridades: afora três exemplares, as autoridades policiais apreenderam
toda a edição, inclusive os originais, a composição e as provas. O livro é
composto por dez narrativas breves, que descrevem os bairros pobres de Luanda,
onde habitam meninos negros, brancos e mestiços. Ouvimos estas vozes como se
estivéssemos a escutar alguém a ler em voz alta, e descobrimos dois mundos, um
branco e um negro, que vivem na mesma infância. Logo no primeiro conto, Encontro
de acaso, somos convidados a entrar na Grande
Floresta acompanhados por miúdos de oito anos, de corpos escuros, de brancos que brincavam todo o dia nas areias vermelhas,
que saboreavam iguarias como quicuerra,
peixe frito e açúcar preto com jinguba;
e que queriam conquistar o Kinaxixi,
bairro operário contíguo ao Makulusu,
que era um bairro novo que se ia construindo com o comércio do café. A
narrativa recria a desigualdade do sistema colonial. Porém, acima de tudo,
introduz a dor como elemento primordial da criação estética:
Como são dolorosas as recordações! Oh, quem me dera outra vez mergulhar
o corpo em água suja e ter a alma limpa como nos tempos em que ele, eu, O Mimi,
O Fernando Silva, o João Maluco, o Margaret e tantos outros éramos os reis da
Grande Floresta.
O próprio narrador nos conduz a este entendimento, ao confidenciar que tudo se modificou e só a ferida feita
pela memória persiste ainda. Neste conto estão presentes os valores
permanentes internos da consciência e os imperativos históricos e externos da mudança
e da transformação, tanto do ser humano como de um povo. Assim, numa sequência
de cenas como cinematográficas, a narrativa suscita emoções que envolvem
problemas de hoje e de sempre da existência humana». In Adriana Mello Guimarães, Luandino
Vieira, O Mineiro Angolano da Memória, Artigos e Ensaios, Revista Crioula, nº 3,
2008.
A amizade de Adriana
Cortesia de Revista Crioula/JDACT
Cortesia de Revista Crioula/JDACT