Ciência e Religião. Natureza
e Símbolo
«(…) Do que vimos dizendo não é exemplo menos significativo, para o
caso que aqui mais nos interessa, o par ciência/progresso, de que, em parte,
se nutriu o século XVIII, o qual depende, em última análise, de um forte
sistema dinâmico de mitos e arquétipos. De facto, herdámos até certo ponto o
purismo de um regime científico de pensamento, implicando uma divisão entre uma
natureza mítica e simbolicamente considerada, a qual se tem por falsa com relação a uma natureza verdadeira, situada do lado do objecto. Divisão que não deixou
de ser trágica, por destruir o acordo fundamental entre o Eu e o Mundo, submerso,
este, pela força totalitÍtria do regime científico, que se apresenta assim com
todos os ingredientes do mito. Este pretenso afrontamento entre mito e razão foi,
como escreveu Carlos Silva, uma consequência da concepção iluminista da
filosofìa racional, instaurando uma assimetria artificial das faculdades
humanas, com continuidade nas múltiplas tentativas fenomenológicas, psicanalíticas
e estruturalistas para compreender racionalmente
o mito. Só que, tal corrente, por ironia ou sem ela, veio afinal a representar
um outro mito, o mito da
desmitificação, pois que o seu resultado foi o de provocar uma espécie
de contágio mítico da própria razão. O
sentido para que apontam sectores imporantes da antropologia contemporânea é o da
necessária revisão das nossas concepções sectárias de verdade, fazendo depender
a verdade,
do símbolo da sua força vital,
a qual mais não representa do que essa capacidade de nos integrar numa
totalidade, em virtude de uma função de
recoúecimento ontológico. A vida, como o espírito, tendem para o
equilíbrio, são animados por um movimento essencial que os conduz para a estabilidade
e para a unidade. É essa a função vital do símbolo, actualizando uma
potencialidade essencial do ser, mediante a qual reduz o fragmentário, por um
imperativo de integração num todo mais vasto. Graças sobretudo ao símbolo,
escreveu Mircea Eliade, [...] a
existência autêntica do homem arcaico não se reduz à existência fragmentada e
alienadado do homem civilizado do nosso tempo.
O símbolo não representa, pois, um grau inferior de verdade, porque um
erro deixa imediatamente de o ser, a partir do momento em que o podemos
considerar como vital, na base
de uma compreensão ampla do humano.A vocação do espírito é, também, a de uma
insubordinação contra a morte, por isso que existe, no fundamento da
consciência humana, um fascínio que supera em muito a aventura mortal e interdiz
a alienação do espírito numa pura e simples acomodação objectiva. Trata-se, escreve
G. Durand, de um acto negativo que,
nestes termos, constitui a imagem, mas esse negativo é poder soberano
da liberdade do espírito, ele mais não é do que negação espiritual,
recusa total do vazio existencial, representado pelo tempo, e recusa da
alienação desesperada no sentido próprio objectivo. O sentido
supremo da função fantastica, dirigida
contra o nosso destino mortal é, então, o eufemísmo. O símbolo representa,
pois, um poder verdadeiramente metafísico que, anulando o espaço e o tempo, constitui,
parafraseando G. Durand, uma reserva infinita
de eternidade. Nestes termos, o símbolo não é mais encarado como uma
espécie de juventude do conhecimento científico, um pouco à maneira de Descartes,
nem tão-pouco é interpretado como desempenhando, na prática, um simples papel
de refúgio afectivo, sentimental ou estético: não lhe cabe o estatuto de ornamento
de um discurso, onde a verdade se acoitaria, dele se distinguindo. O que seria aqui
de sublinhar, como resultado de sectores importantes da reflexão contemporânea,
é o esbatimento da radicalidade de fronteiras entre o sentido proprio e o sentido
figurado, surgindo-nos o primeiro como um caso particular do segundo. O
sentido próprio tem de encarar-se já como um símbolo restrito, pois os
sistemas sintácticos da razão são apenas formalizações extremas de uma retórica
imbuída, também ela, do consenso geral do imaginário, uma vez que o
racionalismo não é mais do que uma estrutura polarizante, entre muitas outras,
próprias do campo das imagens». ». In Pedro Calafate, A Ideia de Natureza no
século XVIII em Portugal (1740-1800), Estudos Gerais, Série Universitária, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994, ISBN 972-27-0700-0.
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